Deus entrou na casa de Arlindo Rosário Júnior (39) de diferentes maneiras, num sincretismo religioso raro de acontecer. Os ensinamentos da avó umbandista e da avó evangélica despertaram no menino um aguçado senso de amor ao próximo. Na casa simples de três quartos, na periferia de Belém (PA), moravam ainda a avó materna, o pai, a mãe, uma tia e três irmãs. Mas o quintal era grande e havia muito a se fazer para tornar o mundo melhor, e Arlindo o faria por meio da educação e da religião.Aos 9 anos, o “professor” Arlindo ajudava crianças mais novas com os estudos, no quintal de casa; aos 12, criou um clubinho com os colegas do bairro. “Quem tirava nota baixa na escola era proibido de participar até que melhorasse. Nós vendíamos salgadinhos na rua para conseguir recursos para comprar brinquedos, fazíamos a festa do aniversariante do mês, amigo secreto no Natal e troca de ovos na Páscoa”, lembra. O objetivo era espalhar a felicidade entre as crianças. Os ensinamentos das avós estavam sendo postos em prática.
A avó materna, Maria José de Deus, era neta de escravos e criou sozinha as 3 filhas. Mãe de santo, umbandista, foi professora, enfermeira e parteira. Hoje há uma rua em sua homenagem no bairro, “por ter feito muitos partos e curado muitos doentes”. Ela morreu em 2020, aos 93 anos, em decorrência da Covid-19. Mas seu ensino está sendo levado adiante. “A hora do almoço era sagrada: fazíamos a oração e não podia almoçar de chapéu na cabeça ou sem camisa, pois ela sempre dizia ‘Deus está na mesa’. Hoje, sou o único neto que segue a religião de matriz africana, com muito orgulho”.
A avó paterna, Benedita Figueiredo do Rosário, ele visitava nos fins de semana e nas férias escolares, quando ia à cidade em que ela morava, no interior do Pará. Analfabeta, criou 9 filhos com o trabalho de cozinheira em grandes empresas. “Ela era uma evangélica que tinha total respeito pelas pessoas de outras religiões, uma humildade e simplicidade enorme”, lembra o neto. Benedita morreu em 1999, devido a um câncer no estômago, pois “não fez o tratamento completo no hospital, acreditou nas palavras de um pastor que havia dito que estava curada pela oração dele”.
Ainda que em religiões diferentes, as duas avós eram amigas e unidas pela fé em Deus. “Elas demonstravam um grande respeito uma pela outra e uma fé inabalável”, recorda Arlindo. Foi nesse ambiente de orações, ladainhas, cultos, terços e vigílias presentes nos dois lados da família que o menino cresceu convicto de que o que importa é estar conectado a Deus, ter respeito pelo outro e ser feliz. “Aquela vida religiosa em família, aquela vivência, me trouxe belas lições e até hoje sou grato a essas duas mulheres, que são inspiração para minha vida”, afirma.
Catar latinhas para realizar o sonho
O sonho de ser professor só crescia. Ao concluir o ensino médio, Arlindo não pôde prestar vestibular, pois o ensino público “era precário” e os pais não tinham condição de pagar um cursinho. Por isso, fez um curso livre de filosofia no seminário da igreja católica. Outra vez foram de grande valia os ensinamentos das avós. “Ambas me ensinaram que devemos ter amor pelo ser humano e quebrar todo tipo de preconceito. Sempre foram exemplos de fé, humanidade e religiosidade”, lembra. “Eu sou afro-religioso com muito amor e orgulho”, diz.
Com a conclusão do curso, começou a prestar concursos públicos e passou em três deles, entre 2011 e 2012. Os dois primeiros foram para a Secretaria Municipal de Educação (Semed) de cidades do litoral e do interior do Pará, para o cargo de professor de ensino religioso, mas não assumiu nenhum deles. Por último, conquistou a vaga para a mesma disciplina na Secretaria de Estado de Educação (Seduc), onde trabalhou por dois anos, no município de Salinas (PA).
“Foi quando se intensificou o amor pela docência. A experiência que tive na Seduc foi que meu deu a vontade de estudar e lecionar ensino religioso”, conta. Mas Arlindo foi dispensado do cargo em 2015 por não possuir o diploma de licenciatura exigido pelo Ministério da Educação (MEC). Apesar de triste, voltou para a capital e começou a busca por uma graduação.
Só encontrou o curso de Ciências da Religião na Universidade Estadual do Pará (UEPA), mas não passou no vestibular, em 2017. Contudo, algo conspirava a favor de Arlindo. No ano seguinte, a Uninter lançaria o curso de Ciências da Religião para os seus polos de educação a distância em todo o Brasil. Foi assim que o sonho de infância começou a se concretizar. “Para mim, foi a melhor coisa mundo, porque eu podia fazer o curso e trabalhar ao mesmo tempo”, lembra.
Após a demissão na Seduc, Arlindo passou a trabalhar como autônomo em vendas de frutas e serviços gerais. Com o esforço, conseguia pagar a graduação. Mas, poucos meses depois, as oportunidades de trabalho foram escasseando e ele teve de trancar a matrícula. Então, “no desespero”, tomou uma atitude que a família chamou de loucura. Em outubro de 2018, começou a coletar latinhas na rua para conseguir o dinheiro necessário para levar o curso adiante.
Arlindo tinha um objetivo, e nada o faria desistir dele, nem as piores contingências da vida. “Na frente não passava mais nada. Comecei a catar latinha para vender e consegui voltar para o curso”, diz. Seu único instrumento para os estudos é o celular com a tela quebrada. “Não tenho vergonha de dizer: sou pobre. Essa realidade é muito presente no Brasil, não posso mascarar e mostrar uma coisa que eu não sou. Eu sou pobre, mas sou digno e corro atrás da minha felicidade, que é o principal objetivo da minha vida.”
Realidade dura e carregada de preconceito
Mais do que a superação para a realização de um sonho, a história de Arlindo expõe a dura realidade dos catadores de materiais recicláveis e a necessidade de uma melhor compreensão da população para a importância dessa atividade.
Muitos dizem que ele foi “catar lixo”, mas estão equivocados. “Não, eu não fui catar lixo, eu fui procurar material para vender. E me orgulho muito disso. Conheci um mundo muito grande fora da realidade que eu tinha. Conheci catadores, associações, um outro mundo que muita gente não conhece”.
Arlindo é um dos mais de 800 mil catadores de reciclável em atividade no Brasil, de acordo com dados do Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), de 2016. A rotina de um coletor de recicláveis não é nada fácil. Arlindo, por exemplo, acorda todos os dias entre 3 e 4 horas da madrugada, faz a higiene pessoal e toma um “café reforçado” para aguentar as mais ou menos 8 horas diárias de trabalho. Ele não tem ideia do quanto caminha por dia, mas passa por lixões, comércios, ruas dos bairros e casas que solicitam a coleta.
O catador conta que, independente da distância, sempre há muito material para coletar. A carroça, que recebeu por uma doação, pesa 40 kg, mas com o peso do reciclável ele chega a puxar até 200 kg. “Durante o dia todo eu bebo bastante água e, quando tenho dinheiro, compro algum lanche pela rua ou ainda recebo um café ou suco nas casas das pessoas”, diz. Antes, coletava carregando vários sacos de materiais na mão mesmo. “Era cansativo, mas nunca desisti”.
Arlindo retorna para casa por volta do meio-dia para almoçar e fazer a triagem da coleta, que nada mais é do que a separação de plástico, garrafa pet, papelão, ferro, alumínio, latinha, plástico duro. Esse trabalho minucioso é realizado das 14h às 19h, para então se concentrar nos estudos à noite, no tempo que sobra.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a renda média dos catadores era de R$ 975,00 entre 2017 e 2018. Arlindo está longe disso. A venda quinzenal dos recicláveis rendia no máximo R$ 500,00 por mês; hoje não passa de R$ 300,00. Em Belém, o catador recebe 10 centavos por um quilo de papelão, por exemplo. “É muito pouco para muito trabalho. Se não tivesse o apoio dos meus pais com alimentação, transporte, internet, o problema seria muito maior”. A família faz toda a diferença, como se vê.
Entre tantos percalços, Arlindo diz que “o que mais dói” são os olhares de preconceito. “Quando a gente passa, as pessoas nos olham com um olhar quase que dizendo que não somos seres humanos, que somos animais”. Além da falta de apoio do poder público e dos riscos que correm ao trabalhar sob sol e chuva, um catador pode se machucar com os materiais separados de forma incorreta pela maioria das pessoas.
Ainda assim, Arlindo diz que se sente uma pessoa de sucesso ao perceber que está “contribuindo para o meio ambiente, diminuindo a quantidade de resíduos sólidos”. E acredita que é preciso “quebrar o preconceito para poder ajudar o próximo, ter essa relação de alteridade, que é muito forte para a felicidade do ser humano”.
“Pessoas que estão no lixão não estão pegando porque querem, mas porque necessitam. Essa realidade é muito presente e as pessoas não têm visão para isso. Tanto que, quando eu falei que eu ia ser catador de materiais recicláveis, muitas pessoas disseram que não era legal, que não era para eu fazer isso, não era para eu vivenciar essa história. Colocaram vários defeitos, mas, pensando no curso que eu queria fazer, segui em frente e até hoje continuo nessa atividade”, salienta.
O aluno que fez o reitor chorar
Hoje, aos 39 anos, Arlindo Figueiredo ainda vive no mesmo local onde cresceu, com a mãe, o pai e a irmã mais nova. É um dos muitos casos de superação e determinação que a Uninter soma em 25 anos de educação, de pessoas que acreditam no ensino superior para uma mudança de vida. Ele foi selecionado no concurso cultural Histórias que fazem a nossa história, realizado pela Central de Notícias Uninter (CNU), para o qual produziu um vídeo, com o único equipamento de que dispõe: o telefone celular. Em quase 4 minutos, conta os desafios que enfrenta no dia a dia para garantir os estudos.
O estudante foi um dos convidados do programa Conversa com o reitor, transmitido pela Rádio Uninter no dia 09.abr.2021. O programa é um canal aberto todas as sextas-feiras para que o reitor da Uninter, Benhur Gaio, interaja com alunos, egressos e colaboradores da instituição em todo o Brasil. Naquele dia, o reitor chorou ao vivo. Não só ele, a história de Arlindo fez chorar a todos que assistiam ao programa, inclusive outras três participantes do programa. Quem não verteu lágrimas, ao menos engoliu em seco.
Durante o bate-papo, Benhur abriu o sistema da instituição para correr os olhos sobre o histórico escolar de Arlindo. Logo, traria duas surpresas. “É um aluno exemplar, muita nota 10”, enfatizou. A essa altura, voz já embargada, o reitor declarou que Arlindo “não deve mais nada à Uninter”. Os quase dois anos seguintes até a conclusão do curso serão por conta da casa, em reconhecimento ao excelente desempenho na graduação e pela história de vida.
Não bastasse isso, o reitor garantiu uma pós-graduação para Arlindo. “Fica aí uma referência de vida para todos nós. E não só para os nossos alunos da Uninter, para todas as pessoas que estão hoje em situações complicadas e continuam lutando”, conclui o reitor.
“Eu ouvi a fala dele tentando acreditar ou entender o que ele estava falando. Quando a ficha caiu, não consegui conter o choro. Minha voz falhou, eu queria pular, sair dali e dar um abraço bem forte nele e nos outros participantes do programa. Naquele momento passou um filme na minha cabeça e vi a atitude do reitor como um reconhecimento por todo o esforço que tenho feito nestes dois anos e seis meses que luto para conseguir a minha graduação”, conta Arlindo.
Mesmo com a bolsa, o estudante pretende continuar a coleta de recicláveis, até conseguir um trabalho formal, pois com a isenção da mensalidade ele pode “guardar dinheiro para comprar um computador e poder estudar melhor”. Agora que começou o estágio, na iniciação científica da instituição, Arlindo quer dar continuidade aos estudos, com especialização “e, quiçá, um mestrado, doutorado, porque eu posso e eu consigo”.
Autora: Nayara Rosolen