Minha ida até Colônia de Sacramento
tinha dois objetivos. O primeiro era para atravessar no Buquebus, por ser mais
barato de lá para Buenos Aires, pois a distância é muito menor do que de
Montevidéu para a capital da Argentina; o segundo motivo era para conhecer a
pequena e encantadora cidade fundada em 1680 quando ainda fazia parte do
Império Português. Conseguir cumprir apenas a segunda intenção.
Meu amigo Esdras Baltar Jr. havia me
avisado que o transporte no Buquebus não é nada barato. E não mesmo, pois para
cruzar os 40 km que separam Colônia de Sacramento de Buenos Aires a tarifa
cobrada por uma moto Honda Twister 250 é de R$ 297,00. Nada comparado aos
308,97 Euros para atravessar os 160 km de Montevidéu para Buenos Aires.
Convertendo para o Real dá R$ 1.319,00. Levei um susto quando o atendente me
falou o preço. Achei que havia entendido errado, mas, era esse mesmo o valor.
O Real vale cerca de 11 pesos uruguaios,
eu andava sempre com dinheiro suficiente para abastecer, caso chegasse a algum
lugar onde não pudesse pagar com cartão. Essa é uma dica para quem se arvora
como eu a encarar jornadas solitárias: andar com o mínimo necessário de
dinheiro no bolso para eventualidades. O dinheiro que eu tinha no bolso não
dava e eu precisa ir a um caixa plus para sacar mais plata.
Decidi não atravessar de Buquebus.
Continuei percorrendo o território uruguaio no sentido norte para atravessar a
fronteira com a Argentina pela ponte Internacional. Como já estava perto de
seis horas da tarde, chovendo e com a temperatura despencando, parei na
primeira na primeira cidade que encontrei, Tarariras, que em Português quer
dizer traíra. No dia seguinte demorei mais do que gostaria para sair, porque
tive que procurar a única loja de artigos para motos da pequena cidade para
comprar um novo par de luvas, porque havia perdido as minhas. Também precisei
comprar um sapato novo, pois o que eu estava usando tinha caído o solado.
Atravessei a ponte que divide o
Uruguai da Argentina, sobre o rio Uruguai, no começo da tarde. Por pouco um
carro de passeio não me atingiu quando passava pela cidade argentina de Zárate.
Prossegui para o Sul pensando em pernoitar na próxima cidade, Campana, porém,
não gostei das tarifas dos hotéis que consultei e resolvi continuar a viagem
até a próxima cidade, que era San Andrés de Giles, onde cheguei às onze e meia
da noite. Já estava bem perto de Buenos Aires naquela sexta-feira, 23. Foi um
erro não continuar procurando um hotel com menor preço em Campana.
Em frente à Casa Rosada, Palácio do Governo da Argentina |
Sábado, 24 de novembro, a Argentina respirava
o jogo River Plate x Boca Juniors, pela decisão da Copa Libertadores de América.
Não se falava em outra coisa. E foi com esse clima, com bandeiras dos clubes
nos carros e em tudo quanto era lugar, que eu cheguei a Buenos Aires. Cruzei a
cidade de oeste para leste até a histórica Plaza de Mayo para conhecer os
principais pontos históricos do centro do poder da capital argentina.
Foi uma novela até eu conseguir um
lugar para guardar minha moto, porque não pode estacionar ao redor da praça.
Como era sábado, não havia uma única garagem funcionando. Somente depois de dar
umas quatro voltas foi que encontrei um guarda de uma repartição pública, o
Miguel, que se prontificou a olhar para a Twister. Não fosse ele, eu teria conhecido
a Plaza de Mayo, mas, não teria feito fotos da Casa Rosada, o palácio do
governo argentino, o Banco de la Nacion e outros pontos.
No retorno fotografei o famoso
Obelisco, local das grandes comemorações dos portenhos. Fiquei um pouco
decepcionado com esse último ponto. O obelisco de São Paulo, no Ibirapuera, é
mais bonito. Mas, era importante fazer o registro, e fiz.
Mesmo sendo sábado, o trânsito estava
bem intenso naquele dia. Perto de duas da tarde eu me dirigi na direção da Ruta
Nacional 3, que nasce ainda em Buenos Aires e percorre 3.074 km até chegar a
Ushuaia, no estremo sul da Argentina e o continente sul-americano e a cidade
mais austral do planeta. Era muito chão que eu tinha pela frente. Muito chão, e
imprevistos.
Demorei a passar
pela cidade portuária de Bahia Blanca, porque o trecho da rodovia que atravessa
cidade estava em condições horrorosas. Naquele dia dormi em Azul, cidade um
pouco menor do que Itaituba, que tem uma bela igreja católica. Aliás, gosto
muito de fotografar templos religiosos, não importando a denominação. O dia
rendeu pouco na estrada.
Antônio Facundo, o cara que me ajudou em Rivadavia |
Domingo, 25, segui
minha jornada, percorrendo 760 km até San Antonio Oeste, onde cheguei pouco
depois das cinco da tarde. Como o Sol somente se poria depois de oito da noite,
daria para continuar, mas, a próxima cidade com garantia de encontrar um bom
lugar para dormir fica a 271 km. Eu já estava viajando há oito dias.
O GPS socorreu-me
diversas vezes, porque houve muitas situações em que a sinalização era um pouco
confusa, tanto no Brasil, quanto na Argentina.
Cheguei até a pegar a estrada errada por pouco tempo, tendo que lançar mão do GPS para saber qual era o caminho certo.
Cheguei até a pegar a estrada errada por pouco tempo, tendo que lançar mão do GPS para saber qual era o caminho certo.
Em alguns momentos a
tecnologia não conseguiu me socorrer, e foi preciso apelar para o conhecimento
empírico dos caminhoneiros brasileiros e argentinos. Isso aconteceu quando
havia mais de uma possibilidade de chegar a um determinado lugar, e o GPS não
tinha como me dizer qual seria a melhor escolha. Às vezes a maneira mais rápida
de chegar era por um caminho mais longo, porque o mais curto estava muito ruim.
Os caras sabem tudo. Em viagens longas, nunca se deve prescindir da ajuda dos
caminhoneiros.
Fotografei a aurora de Caleta Olívia, com o Sol nascendo sobre o Oceano Atlântico |
Cravei 775
quilômetros rodados na segunda-feira, 26 de novembro. Poderia ter dormido em
Comodoro Rivadavia, mas, é uma cidade portuária de quase 200 mil habitantes,
bastante movimentada, com um trânsito intenso. Já era quase sete horas da
noite, ou talvez seja mais correto dizer, da tarde, pois o Sol ainda estava
alto.
Parei na entrada da
cidade, um pouco receoso, porque ainda estava me adaptando ao comportamento dos
argentinos. Fiquei com medo de ser assaltado, mas, ninguém me incomodou. Parei
porque queria informações sobre a próxima cidade. Fiz sinal para um motoqueiro,
que passava em boa velocidade. Ele parou alguns metros na frente e voltou para
falar comigo.
Facundo Santa Maria.
Esse é o nome do cara que me deu uma atenção especial, explicando-me tudo
direitinho sobre Caleta Olivia, distante 58 km dali. Facundo ainda se ofereceu
para me guiar até a cidade da cidade, pois de fato o trânsito estava complicado
e eu teria dificuldades para sair de lá de Comodoro Rivadavia sozinho. E não é
que Caleta Olivia estava prestes a entrar na minha vida para sempre!
Passei a noite em claro. Não
consegui pregar o olho em momento algum, consumido pela insônia repentina, que
exauriu minhas energias. O dia amanheceu e eu estava um bagaço. Se tivesse
juízo, teria ficado para dormir, porque uma hora o cansaço me venceria. Mas,
não, tomei a pior decisão que poderia tomar. Peguei a moto cedo, abasteci e
tentei enganar-me, dizendo para mim mesmo que começaria devagar, e depois o
sono desapareceria.
Em vez de ficar descansando para continuar no dia seguinte, passei o dia no hospital |
Estrepei-me, porque quando
estava quase saindo de Caleta Olivia, numa curva muito aberta, do tipo em que
ninguém consegue cair, eu caí quando estava no máximo a 40 km por hora. Caí
porque dormi em cima da moto, e Twister caiu por causa da desaceleração. Quando
dei por mim, estava debaixo da moto, sem saber o que tinha acontecido.
Socorro, me ajudem, gritei eu
para umas pessoas que pararam. Rapidamente um motorista desceu de seu carro e
foi até mim pedindo que eu ficasse calmo, pois ele já estava ligando para o
socorro médico e para a Gerdameria, a Polícia Militar da Argentina. Não demorou
nem cinco minutos para que eu começasse a ser atendido pela equipe do hospital
público da cidade, mesmo tempo em que os gerdames pegam os meus pertences
(celular, documentos, capacete e tudo que se desprendeu na queda. Um oficial
foi até mim e pediu que ficasse calmo, pois eles cuidariam de tudo, incluindo
minha moto que seria guardada.
Cheguei ao hospital com muitas
dores, sem saber o tamanho do estrago da queda no meu corpo. O maior medo era
de uma fratura em qualquer parte do corpo, pois se acontecesse, a Expedição ao
Fim do Mundo se encerraria bem ali, antes da metade da viagem em território
argentino. Um dos médicos de plantão foi me receber ainda na ambulância, tal a
presteza. Ele ficou assustado com minha taxa de glicemia. O diabetes estava em
380 mg. Por isso, foi aplicada uma dose de insulina, remédio que usei poucas
vezes, sempre em situações extremas.
Depois de baixar para um nível
aceitável, a glicemia voltou a passar dos 200 mg. Lá se foi nova dose de
insulina. Enquanto isso, o médico me informou que eu ficaria no hospital, em
observação, até segunda ordem, até que a glicemia normalizasse. Para minha
suprema sorte, depois da radiografia nas pernas ficou comprovado que não havia
fraturas. Só ralei os dois joelhos, o direito com maior gravidade. Doeu muito
quando foi feito o curativo, todavia, ficou só nisso.
Depois que tive a confirmação
de que não havia nenhum traumatismo no restante do corpo eu já queria ir
embora. O médico Alejandro Lopes não deixou de jeito nenhum. Precisava
continuar em observação. Quando deu quatro horas da tarde eu pedi para ele me
liberar. “Por mim eu não liberaria, mas, se o senhor quer mesmo sair, tem que
assinar um termo de responsabilidade”, disse-me ele. E eu assinei.
Faltavam 1.173 quilômetros
para chegar ao meu destino, Ushuaia. Já tinha percorrido mais da metade da Ruta
3 desde Buenos Aires, cuja distância total é de 3.096 km. Podia dizer que eu
estava perto de alcançar o meu objetivo de pisar no solo da mais austral de
todas as cidades do mundo, e não seriam os meus dois joelhos feridos, o direito
bastante ferido, que me impediriam.
Uma pequena pausa para falar
sobre o hospital público de Caleta Olivia, um prédio de três pavimentos,
arejado, com enfermarias amplas, três médicos de plantão, que dependendo da situação,
visitam os doentes com a frequência que o quadro exige. O médico Alejandro
Lopes, num espaço de sete horas em que permaneci hospitalizado, foi ver como eu
estava por cinco vezes. Saí dali impressionado com a qualidade do atendimento
médico.
Saí do hospital para a
Gerdameria, onde estava minha moto, minha bagagem e as coisas pequenas que
haviam se desprendido com a queda. Ao chegar lá, fui cordialmente recebido
pelos gerdames, e aconteceu algo que inflou muito o meu ego. Um sargento com o
qual eu conversei por alguns minutos pegando informações, de repente falou para
seus colegas que estavam perto: “amigos, este brasileño habla muy bien”. E ele
ficou repetindo. Isso já havia acontecido em Montevidéu, onde o senhor que
aparentava ter a minha idade disse a mesma coisa. Ele perguntou de onde eu era.
Quando disse que era brasileiro, disse-me: “usted habla muy bien español”.
Depois de receber todos os
meus pertences e verificar que a moto estava em condições de prosseguir a
viagem, porque o slide, a peça que eu tive o cuidado de colocar para prevenir
exatamente contra quedas, evitou que eu me machucasse muito e que a moto ficasse
muito mais avariada. Perdi o retrovisor do lado direito, que eu só viria
encontrar para comprar em Uruguaiana, quebrou um pouco a carenagem do lado
direito e só. De lá fui procurar um hotel para pernoitar. Nesse dia eu dormi
com o Sol ainda alto.
Dentro da História, no Estreito de Magalhães |
Amanheci um pouco baqueado na
quarta-feira. Andava mancando, mas, já estava no lucro, porque poderia ter sido
muito pior. Com frio, montei na moto com o intuito de dormir em Rio Grande, a
310 km de Ushuaia. Cheguei a Rio Gallegos, cidade de 80 mil habitantes e capital
da província de Santa Cruz. Pensei em seguir para Rio Grande, pois o relógio
marcava 17:30, mas, o Sol estava como se fosse 15:00 em nossa região. Daria,
mas, seria demais cansativo. Como ainda estava convalescendo da queda, preferi
parar.
63 km ao sul de Rio Gallegos
eu tive que dar entrada na aduana do Chile, pois a altura do paralelo 52º sul, o
território do Chile avança até o mar, deixando a Argentina sem território seco.
A Ruta Nacional 3 sofre
uma interrupção entre os km 2674 e 2696, devido à presença do Estreito de
Magalhães.
Algumas peculiaridades cercam o longo trajeto.
Por exemplo: a rodovia sofre uma interrupção,
devido à presença do Estreito de Magalhães. Por
conta disso o acesso entre as províncias de Santa Cruz e Terra do Fogo é
efetuado através do Chile, dividido em duas partes. A primeira,
para quem vai do Norte para o Sul, e feito pela Ruta
CH-255 e Ruta
CH-257. São 57 km ao norte do
Estreito de Magalhães, todo o trecho asfaltado. A segunda tem a maior parte
pavimentada, com trechos de "ripio" uma espécie de brita, de
148 km ao sul do mesmo, totalizando 205 km.
Eu me senti dentro dos livros
de História, ou na sala de aula no final dos anos 1960, estudando as grandes
navegações, que inclui a descoberto do Estreito de Magalhães, pelo navegador
português, Fernão de Magalhães, que não só encurtou a ligação do Atlântico com
o Pacífico sul, como tornou a viagem mais segura, pois não seria mais preciso
atravessar o temido Cabo Horn, onde existem mais de mil embarcações
naufragadas.
Paisagem de calendário, a 46 km de Ushuaia |
A ansiedade estava deixando
minha adrenalina ainda mais alta por conta de estar tão perto de Ushuaia.
Faltavam apenas 582 quilômetros. Com estrada boa quase o tempo todo, desde de
Buenos Aires, fiz o percurso restante com uma imensa alegria. Para meu deleite,
antes de chegar passei por uma serra de mais de 30 km de extensão pela qual tive
que pilotar com muito cuidado, porque havia muitas curvas fechadas.
Quando faltavam uns 40 km para
chegar, comecei a avistar os montes que cercam Ushuaia. Uma imagem deslumbrante
aquela dos montes nevados que rodeiam a cidade. Naquela região começa a
Cordilheira dos Andes. Às 19:23 eu parei em frente ao pórtico da cidade, onde
fiz as primeiras fotos. Eu, que já conhecera boa parte do começo e da parte
central, agora estava conhecendo o início da cordilheira.
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