domingo, dezembro 07, 2014

Procurador da República, Felício Pontes: comunidades tem que ser ouvidas sobre hidrelétricas

Os procuradores da República, Felício Pontes e Fabiana Schineider afirmam que não dá para construir usinas hidrelétricas no Tapajós sem ouvir o povo que vive em toda a região que será afetada

Procurador da República, Felício Pontes
Foto: JParente

O procurador do Ministério Público Federal no Pará, Felício Pontes Jr. esteve presente em São Luiz do Tapajós, sendo um dos mais aguardados por suas posições sempre muito firmes em favor das populações tradicionais e contra esses mega projetos que causam muitos impactos ambientais e sociais. Fabiana Schneider, procuradora que atuam em Santarém e na região, também marcou presença firme no evento de São Luiz.
Em 2012, Felício recebeu a Comenda Dom Helder Câmara de Direitos Humanos, conferida pelo Senado Federal a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante à defesa dos direitos humanos no Brasil.
Há mais de 10 anos, Felício Pontes Jr tem sido um dos principais defensores dos que sofrem – e combatente dos que cometem – injustiças e violações de direitos humanos e ambientais no Pará. É um personagem conhecido, respeitado e querido por indígenas, ribeirinhos, pescadores, quilombolas e demais populações que enfrentam cotidianas violações de seus direitos. Mas também é conhecido e temido pelos grandes depredadores da floresta e dos rios do Estado.
A atuação de defensores de direitos humanos no Brasil, historicamente, não é uma tarefa fácil. No caso de Felício, porém, a principal retaliação não vem de pistoleiros, mas do próprio governo federal. Suas ações contra ilegalidades nos casos de grandes projetos infraestruturas, como as hidrelétricas de Belo Monte e Teles Pires e o complexo hidrelétrico do Tapajós, levou  a Advocacia Geral da União (AGU) a tentar insistentemente impedir o cumprimento dos seus deveres constitucionais de defesa do meio ambiente e das populações tradicionais: por três vezes, a AGU protocolou reclamações disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), solicitando o afastamento e a substituição de Felício nos processos que envolvem a construção de Usinas Hidrelétricas. Todas as tentativas fracassaram e as reclamações foram indeferidas.
Procuradora da República, Fabiana Schneider
Ao fundo, as belezas de São Luiz do Tapajós
Foto: JParente
Ao reconhecer e honrar publicamente a atuação do procurador, o Senado torna mais evidente o caráter antidemocrático da defesa da AGU de ações governamentais que ferem a legislação e o Estado Democrático de Direito do país.
Agora, no momento em que o governo federal tentar passar por cima de todos com seu rolo compressor, a integração de Felício Pontes ao movimento de resistência às obras do complexo hidrelétrico do Tapajós vai reforçar enormemente essa luta que mal está começando. Em São Luiz do Tapajós, Felício Pontes e Fabiana Schneider concederam inúmeras entrevistas, sempre com muita presteza. Uma delas foi para o Jornal do Comércio.
JC – De que modo o Ministério Público Federal pode ajudar para que o governo aja com um mínimo de respeito com as comunidades, no caso dessas obras do complexo hidrelétrico do Tapajós?
FP – Nós conseguimos uma vitória muito importante numa decisão judicial muito relevante, ano passado, para que seja reconhecido o direito a consultas públicas, não só dos povos indígenas, como de todas as comunidades que serão diretamente afetadas por esses empreendimentos. Esse direito não vinha sendo respeitado em nenhuma outra hidrelétrica que tenha sido construída no Brasil. Vai ser a primeira vez que isso vai acontecer por parte do governo federal. Eu acho que esse é um momento importante, porque essas pessoas, que conhecem como ninguém o rio Tapajós, cujo comportamento diante da construção dessas barragens é contrário, com suas centenas de anos de experiência acumulada, que esse conhecimento possa aflorar agora para que a gente leve isso para os processos judiciais. Então, eu acho que esse vai ser o grande diferencial da obra de São Luiz do Tapajós em relação a todas as hidrelétricas que já foram construídas na Amazônia. Esses povos precisam ser consultados para dizer se querem ou não que essas hidrelétricas desse complexo possam ser consumadas. Isso não foi feito em nenhum lugar da Amazônia. Pela primeira vez, o governo federal está sendo obrigado a fazer isso, e começa aqui por São Luiz do Tapajós.
JC – O senhor vê alguma peculiaridade que denote diferença de comportamento da resistência a esse tipo de empreendimento?
FP – Uma coisa marcante é a resistência do povo Munduruku. É uma resistência famosa, conhecida por todos aqueles que estudam os povos indígenas no Brasil. Nas hidrelétricas de Rondônia - Santo Antônio e Jirau -, que terminou influenciando na inundação de Porto Velho, não havia indígenas diretamente afetados; com relação a Belo Monte, na volta grande do Xingu, nós temos duas etnias que já foram impactadas há muito tempo e com um número muito pequeno de indígenas que não chegam a mil pessoas que vão ser impactadas diretamente. Já em relação ao Tapajós, nós temos treze mil indígenas Munduruku lutando contra as hidrelétricas. Esse é um fator decisivo, pois eles estão dispostos a lutar para que essas hidrelétricas não aconteçam, passando por cima do direito deles. Então, independente do que ocorra na Justiça, eles não vão permitir que ocorra aqui, o que aconteceu em outros lugares do Brasil.
JC – O governo tenta adiantar o processo, marcando data para licitação, recuando quando pressionado...
FP – Essas coisas que estão acontecendo não avançam o processo de licenciamento ambiental, que está estagnado, porque não pode haver um novo passo sem que haja consulta. O que está acontecendo, ainda é um preparativo para a consulta, que deve demorar alguns meses, ou até anos. Isso se deve à decisão judicial e a toda articulação que está sendo feita com o povo Munduruku.
JC – Como o Ministério Público Federal vê essa tentativa do governo, de ignorar a existência nos estudos feitos até agora, as populações de todos os tamanhos, existentes nos locais onde pretende construir as hidrelétricas no Tapajós?
FP – Isso mostra pra gente, que esse não é um projeto para beneficiar os povos da Amazônia, as pessoas que vivem aqui. Esse é um projeto que foi feito e concebido por pessoas de fora da Amazônia para levar energia para lugares longe daqui. Não foi levado em consideração o impacto que isso vai causar aos povos que vivem aqui, principalmente Itaituba.
Eu tenho uma preocupação muito grande com Itaituba, porque vi o que aconteceu em Altamira, antes e agora com a hidrelétrica sendo construída. Altamira está um caos, com pessoa morrendo por falta de atendimento médico, as escolas não conseguem absorver essa população toda que chegou, e dizem que essa migração para o município de Itaituba será de carca de 130 mil pessoas. Se isso acontecer, vai mais do que duplicar a população de Itaituba em um ou dois anos. Então, se os serviços públicos, hoje, já são deficientes, você imagina o que vai acontecer com a duplicação da população.
Eu chamo atenção para o que está acontecendo em Altamira, onde houve um aumento considerável da violência. Em relação ao que existia antes, cresceu muito a violência em Altamira, principalmente contra crianças e mulheres. Por isso, se o processo da hidrelétrica de São Luiz acontecer do jeito que o governo quer, eu temo que Itaituba se transforme naquilo que é Altamira, hoje.
JC – O que o senhor tem a dizer para muita gente de Itaituba, que só pensa na riqueza fácil, ignorando que uma obra da magnitude de São Luiz do Tapajós vem em um pacote fechado, trazendo algumas coisas boas, mas, muita coisa ruim junto?
FP – Eu acho que as informações a respeito dessa hidrelétrica anda não chegaram de uma maneira muita clara para essa população, que ainda não compreendeu os impactos que serão sentidos. Precisamos pensar em um processo de conscientização dessa população, não só de São Luiz e Pindobal, mas, também o centro populacional de Itaituba, para que se possa sentir os efeitos verdadeiros desse projeto. A hidrelétrica de São Luiz do Tapajós está prevista como a segunda mais cara do Brasil. A primeira é Belo Monte, que vai custar R$ 31 bilhões, enquanto São Luiz está orçada em R$ 31 bilhões, e o impacto disso sobre a comunidade será muito grande.
            Para os que querem saber como devem se comportar diante de um projeto com o esse, principalmente os comerciantes, eu aconselho que façam uma visita a Altamira, fazendo uma consulta aos comerciantes locais, que também achavam que era o progresso que estava chegando com a construção da barragem, e agora vejam em que situação eles estão. Achavam que seriam beneficiados com um grande crescimento das vendas, mas, chegaram grandes lojas junto com a obra, e foram elas que se beneficiaram, vendendo equipamentos e quase tudo que é preciso, em detrimento das lojas locais.
JC – Pode-se dizer que o governo embrulha o projeto em um vistoso papel de presente, mas, quando se abre, o que tem dentro é bem diferente do produto que foi vendido?
FP – Essa figura de linguagem que você usou na pergunta, pode ser muito bem utilizada. O governo tenta dizer que haverá diálogo, que acontecerão coisas boas paras os povos amazônicos. Eu não consigo ver isso. E eu gostaria que me mostrassem, na Amazônia, onde foi que alguma hidrelétrica foi construída, e que serviram mesmo de benefício para a população local. Eu desafio o governo onde foi que a população ganhou com a construção de hidrelétricas.
            Procuradora da República Fabiana Schneider – Nascida em Rondônia, mas, atualmente sediada em Santarém, a Procuradora da República Fabiana Schneider conhece bem o que aconteceu em seu estado, na construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Agora ela acompanha tudo que diz respeito ao complexo hidrelétrico que o governo projetou para o rio Tapajós, de modo especial, São Luiz, o maior de todos esses empreendimentos.
JC – A senhora acha que esse grito pelo Tapajós vai despertar consciências para que não aconteça aqui, do jeito que o governo quer que seja?
FS – Eu acredito que esse é um passo importantíssimo. Medidas judiciais já foram adotadas, recomendações já foram feitas, mas, é com a ajuda da força dos movimentos sociais que nós poderemos obter vitórias, para que o restante do Brasil perceba que aqui tem gente e que temos uma riqueza imensa a ser protegida.
JC – O fato de o governo fazer de conta que aqui só tem mata e água, ignorando as populações, tira o sono do Ministério Público?
FS – Essa é uma das nossas grandes preocupações, porque além das comunidades tradicionais, nós temos um bioma todo que deve ser protegido; temos uma cultura que precisa ser protegida.
JC – Depois desse ato de protesto de São Luiz, a senhora acredita que a voz do Tapajós, finalmente vai ser ouvida bem mais longe?
FS – Certamente, sim. É uma oportunidade para que haja uma divulgação maior, dos problemas e das dificuldades que estão sendo enfrentadas aqui e para que haja uma sensibilização, não só dos órgãos públicos, mas da comunidade em geral.
JC – De acordo com o seu entendimento, a que se deve esse comportamento do governo, que querer impor sua vontade a qualquer preço?
FS – Eu acho que isso é uma demonstração da inobservância da nossa lei maior, que é a Constituição Federal. E é claro que deixar de observar a nossa Constituição leva a um autoritarismo indesejado. Nós vivemos em uma democracia que deve ser plena. Somente ouvindo a voz dessas comunidades que estão sendo atingidas é que nós poderemos falar que há uma real democracia.
JC – Nós, do Jornal do Comércio, temos plena consciência dessa grande conquista que veio através da Constituição Federal e 1988, que é o Ministério Público, que defende a cidadania. Sem vocês, a luta contra os poderosos seria muito mais árdua...
FS – Muito obrigada. Com certeza, o Ministério Público é um ganho da sociedade, porque nós existimos como instituição independente, autônoma de qualquer um dos ramos do poder. O Ministério Público exerce uma função especial, trabalhando para que os direitos constitucionais sejam respeitados. É claro que há interesses outros que podem afetar o Ministério Púbico federal. E eu vou além! As nossas prerrogativas, principalmente quanto às investigações, só foram asseguradas, no ano passado, com as manifestações sociais, que foram às ruas para exigir que fosse mantido o poder de investigação do Ministério Público.
JC – O que o Ministério Público Federal, em Santarém, tem feito, com relação a esse projeto de construção de hidrelétricas no Tapajós?
FS – Várias medidas tem sido adotadas, tanto judicialmente, quanto extra judicialmente. Judicialmente, já temos uma ação civil pública da consulta pública, de acordo com a Convenção 69, da Organização Internacional do Trabalho (OIT); extra judicialmente temos feito oficinas para conscientização das comunidades a respeito dos seus direitos para exercê-los da melhor forma possível, e além disso, o mais recente ato foi a Recomendação 9, de novembro de 2013, emitida pela doutora Janaína Andrade, que recomendou, tanto para o ICMBio, quanto para o Serviço Florestal Brasileiro, que não fosse realizada a audiência pública para a concessão das flonas Itaituba I e II, o que acabou sendo observado, já que a audiência pública foi suspensa.

*Na edição 191 do Jornal do Comércio, circulando.

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