Eu tinha apenas treze anos quando
aconteceu o golpe militar, no dia 31 de março de 1964. Ou teria sido dia 1º de
abril daquele ano? Sobre isso, nem os historiadores chegaram a um acordo até
agora, porque o levante começou no dia 31 de março, mas, o presidente João
Goulart foi deposto no dia 1º de Abril.
Vivia eu em Santarém, uma pacata cidade
de uns trinta mil habitantes, na qual a maior autoridade passou a ser o
sargento Amazonas, do Tiro de Guerra, braço do exército brasileiro, que nos
próximos vinte e um anos passaria, literalmente, a comandar, não apenas os
destinos do País, mas, também, a vida de todos os brasileiros que em grande
número apoiaram aquilo que para os militares foi definido como a Revolução.
Para mim e para muita gente nada mais foi do que uma ditadura militar.
Fixando-me na data que está
registrada nos livros de história, em 31 de março deste ano de 2014 o golpe
militar completou cinquenta anos de sua deflagração. Para os militares que
fizeram parte daquele momento da história nacional como copartícipes, ou que
foram se integrando ao longo dos vinte e um anos de sua duração, este é um
momento de muita saudade. Todavia, para mim, do alto dos meus 63 anos bem
vividos, eles não me trazem boas recordações, nem como profissional da
Imprensa, nem tampouco como cidadão que sou.
Tenho acompanhado com um misto de
preocupação e desapontamento, as manifestações encolerizadas de alguns
contemporâneos meus, que tem usado com muita frequência as redes sociais,
sobretudo o Facebook, para defender a volta dos militares ao comando supremo do
Brasil. Respeito todos os que pensam diferente de mim, em se tratando de pontos
de vista, ou de ideologia política, pois a diversidade é que faz a mistura que
tem como resultado essa sadia heterogeneidade da nação brasileira.
Afirmam que havia menos violência, e de
fato havia. Mas, dependendo do tipo de crime do qual alguém fosse acusado, se
fosse preso, poderia nunca mais voltar para casa, desaparecendo sumariamente.
Dezenas de brasileiros são procurados por suas famílias, até hoje. Bradam os
defensores da ditadura, que havia menos, ou que não havia corrupção. Mas, essa
é uma mentira que se plantou, pois embora tenham sido construídas obras muito
importantes para o crescimento do Brasil, como as hidrelétricas de Itaipu, a
rodovia Transamazônica e a Ponte Rio Niteroi, ficando somente nessas, seus
custos nunca foram informados para a população brasileira. Porque será? O
ministro da fazenda Delfin Neto disse que era preciso fazer o bolo crescer,
referindo-se à economia, mas, o bolo cresceu sem que nenhuma fatia chegasse até
o povão.
Defender a volta de uma ditadura não é
uma ideologia política, porque se trata de advogar em favor da suspensão das
liberdades individuais, do cerceamento do direito à livre expressão do
pensamento de cada indivíduo e dar todo o poder a poucos para determinar o que
o restante dos duzentos milhões de nacionais poderão, ou não poderão fazer.
Os que defendem essa ideia absurda
de um novo golpe militar argumentam que nos tempos da ditadura o Brasil
desenvolveu-se, ou talvez seja mais correto dizer cresceu de forma acentuada e
acelerada. Todavia, o que esse pessoal não diz, muitos porque não querem,
outros porque não sabem, pois são alienados é que as obras estruturantes, a
maioria delas de grande relevância, foram feitas com dinheiro de seguidos
empréstimos no exterior. Muitas obras foram deveras importantes, mas, faltou
fazer o livro caixa para evitar que o país ficasse tão endividado como ficou,
ao ponto do primeiro governo civil, de José Sarney, ter sido obrigado a
decretar moratória, colocando o Brasil em um limbo econômico como poucas vezes
se viu.
Eu nunca fui simpatizante do PT, e
por isso fico muito à vontade para dizer que acho que tem muita coisa que tem
dado certo, e tem tantas outras que são grandes equívocos dessa sequência de
governos petistas, como o enfraquecimento de respeitadas empresas estatal, como
Eletrobras e Petrobras. Entretanto, comungo da ideia daqueles que entendem que,
se o povo não está satisfeito com o governo que aí está, que o mande para casa
no dia 5 de outubro, quando vai haver eleição. Então, vai estar na ponta dos
dedos de cada cidadão decidir se quer que continue como está, ou se deseja
trocar. Esse é o único caminho sensato, porque essa conversa de que uma meia
dúzia sabe o que é bom para todos nunca me convenceu e nunca funcionou em lugar
nenhum.
Passados cinquenta anos, eu jamais
senti saudades da ditadura, porque mesmo vindo de uma família humilde, fui
criado em um ambiente onde se respirava política. Meus avós maternos, e mais
tarde meus pais, foram sempre adeptos da democracia. Ademais, sofri na pele na
minha atividade profissional, tanto de radialista, quanto de jornalista, as
agruras da falta de liberdade de expressão e até da limitação da liberdade
individual. Justifico meu argumento com alguns fatos que relatarei a seguir.
Em 1978, o general Ernesto Geisel,
então, presidente da República visitou Santarém. Naquele tempo eu gostava da
bater um violão, e ainda se faziam muitas serestas na minha cidade de origem.
Na madrugada do dia em que o ex-presidente chegaria, lá pelas duas da manhã eu
voltava para casa juntamente com outro seresteiro, quando de repente fomos
surpreendidos por alguns militares do exército, que estavam debaixo dos
frondosos pés de acácia da Avenida São Sebastião, em frente ao colégio Santa
Clara. Confesso que o susto foi grande.
Fomos cercados e a bordados
rapidamente. Documentos, disse o superior do grupo. Mostramos os documentos,
que estavam em dia. De onde vocês estão vindo e para onde vão, perguntou o dito
cujo. Estamos vindo da casa de um amigo, respondemos, e vamos para casa dormir,
respondi. O militar nos encarou com cara de poucos amigos e sentenciou: vão pra
casa, mesmo! Não quero encontrar vocês por aí. E se a gente já estava mesmo a
caminho de caso, mais depressa nós chegamos.
Trabalhando na Rádio Rural de
Santarém por quatorze anos, a partir de 1971, nos famosos Anos de Chumbo, eu e
alguns dos meus contemporâneos companheiros de trabalho vivemos diversas
experiências que nunca serão esquecidas. Todas elas por obra e graça do aparato
de repressão do regime ditatorial.
Censura
– A Censura era cruel, muito cruel. Estava presente em todos os momentos das
nossas atividades radiofônicas e jornalísticas. Naqueles anos em que ocupei a
função de diretor de programação da Rádio Rural, todas as emissoras de rádio do
Brasil eram obrigadas a mandar com vinte e quatro horas de antecedência, a
programação completa do dia seguinte. Isso incluía a obrigatoriedade de
entregar três ou quatro enormes folhas de papel datilografadas, contendo os
nomes dos programas e os títulos de todas as músicas com os seus respectivos
cantores e compositores. Era terminantemente proibido rodar qualquer música que
estivesse fora do roteiro de programação. Quando chegava um cantor em visita à
cidade, se o disco que estivesse lançando não estivesse na programação, para
roda alguma música do novo disco a gente precisava enviar um ofício daquela
excepcionalidade. A Censura costuma aprovar. Mas, tinha o poder de vetar, se o
censor assim desejasse. Ele era o senhor absoluto da programação.
Era tanto absurdo, que alcançava até
um simples jogo de futebol que a emissora quisesse transmitir de última hora.
Eram outros tempos, em se falando de tecnologia. Os jogos de fora eram
transmitidos em cadeia com outras rádios, sendo necessário receber o sinal via
Embratel. Muitos desses jogos o departamento comercial vendia em cima da hora,
pois era preciso patrocínio extra para cobrir o custo de Embratel e
aproveitava-se para reforçar o caixa da rádio. Pois não é que se o tal jogo não
fizesse parte do roteiro entregue no dia anterior, a retransmissão só poderia
acontecer depois de se encaminhar um ofício para o Departamento de Censura da
Polícia Federal! Se o agente da PF entesasse de não liberar, não haveria
retransmissão nenhuma.
Em 1976, momentos antes de começar
uma partida entre São Raimundo e São Francisco, o famoso clássico Rai x Fran,
no velho estádio Elinaldo Barbosa, houve uma discussão entre um sargento da
Polícia Militar e um agente da Polícia Federal. O fato deu-se bem na frente da
cabine da Rádio Rural, onde já estava a equipe de esportes da emissora. Eu e o
confrade Osvaldo de Andrade estávamos no comando da jornada. Ele como narrador
do jogo que estava para começar e eu como comentarista. De repente os dois
sacaram suas armas e ficaram apontando um para o outro, ameaçando atirar. Foi
uma correria enorme de torcedores desesperados com o que poderia acontecer.
Conscientes do nosso papel de
profissionais da imprensa, eu e o Osvaldo relatamos tudo o que se sucedia
naquele momento, fazendo críticas
severas ao comportamento daqueles dois policiais, que deveriam dar
segurança ao povo, em vez de estar colocando em risco a integridade física dos
presentes. Foi exatamente por essa linha que eu direcionei o meu comentário.
Mas, nos rendeu dissabores.
O jogo começou, não faço a menor
ideia de quem ganhou, ou se empatou, porque o que ficou marcado na memória foi
o que viria a acontecer no dia seguinte. Mal cheguei à rádio, o gerente Manuel
Dutra estava me esperando para conversar em sua sala. Ele foi logo dizendo que
tinha recebido uma intimação do comandante do 3º. Batalhão de Polícia Militar,
tenente coronel Ailton Guimarães. O documento exigia que eu e o Osvaldo
estivéssemos no quartel da PM às nove horas em ponto. E lá fomos nós.
Manuel Dutra nos orientou a dizer
apenas sim ou não, pois do contrário corríamos o risco de ficar por lá mesmo.
Chegando ao local fomos encaminhados para uma sala onde havia uma grande mesa
de reuniões. Pouco depois entrou o avantajado coronel, com cara de poucos
amigos. O qual foi logo perguntando para mim o que tinha acontecido. Relatei em
detalhes, relato que foi confirmado pelo Osvaldo de Andrade.
Quando terminamos de falar, o
comandante perguntou se eu não achava que a gente tinha se excedido. No meu
entendimento, disse eu, quem se excedeu foram os dois policiais, que deveriam
zelar pela segurança das pessoas, em vez de colocar em risco a vida de quem
nada tinha a ver com suas desavenças. Está bem, disse o coronel, mas, daqui pra
frente é bom vocês tomarem cuidado com o que dizem. Ou seja: os caras que
representavam aquele regime fizeram a lambança e nós é que fomos repreendidos.
Por tudo isso, e por muito mais do que vi e vivenciei, não posso ter saudades
dos tempos da ditadura.
*Artigo publicado na edição 177 do Jornal do Comércio, que está circulando
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