sábado, abril 05, 2014

*Jota Parente: 50 anos depois, não tenho saudades da ditadura

            Eu tinha apenas treze anos quando aconteceu o golpe militar, no dia 31 de março de 1964. Ou teria sido dia 1º de abril daquele ano? Sobre isso, nem os historiadores chegaram a um acordo até agora, porque o levante começou no dia 31 de março, mas, o presidente João Goulart foi deposto no dia 1º de Abril.
Vivia eu em Santarém, uma pacata cidade de uns trinta mil habitantes, na qual a maior autoridade passou a ser o sargento Amazonas, do Tiro de Guerra, braço do exército brasileiro, que nos próximos vinte e um anos passaria, literalmente, a comandar, não apenas os destinos do País, mas, também, a vida de todos os brasileiros que em grande número apoiaram aquilo que para os militares foi definido como a Revolução. Para mim e para muita gente nada mais foi do que uma ditadura militar.
            Fixando-me na data que está registrada nos livros de história, em 31 de março deste ano de 2014 o golpe militar completou cinquenta anos de sua deflagração. Para os militares que fizeram parte daquele momento da história nacional como copartícipes, ou que foram se integrando ao longo dos vinte e um anos de sua duração, este é um momento de muita saudade. Todavia, para mim, do alto dos meus 63 anos bem vividos, eles não me trazem boas recordações, nem como profissional da Imprensa, nem tampouco como cidadão que sou.
            Tenho acompanhado com um misto de preocupação e desapontamento, as manifestações encolerizadas de alguns contemporâneos meus, que tem usado com muita frequência as redes sociais, sobretudo o Facebook, para defender a volta dos militares ao comando supremo do Brasil. Respeito todos os que pensam diferente de mim, em se tratando de pontos de vista, ou de ideologia política, pois a diversidade é que faz a mistura que tem como resultado essa sadia heterogeneidade da nação brasileira.

Afirmam que havia menos violência, e de fato havia. Mas, dependendo do tipo de crime do qual alguém fosse acusado, se fosse preso, poderia nunca mais voltar para casa, desaparecendo sumariamente. Dezenas de brasileiros são procurados por suas famílias, até hoje. Bradam os defensores da ditadura, que havia menos, ou que não havia corrupção. Mas, essa é uma mentira que se plantou, pois embora tenham sido construídas obras muito importantes para o crescimento do Brasil, como as hidrelétricas de Itaipu, a rodovia Transamazônica e a Ponte Rio Niteroi, ficando somente nessas, seus custos nunca foram informados para a população brasileira. Porque será? O ministro da fazenda Delfin Neto disse que era preciso fazer o bolo crescer, referindo-se à economia, mas, o bolo cresceu sem que nenhuma fatia chegasse até o povão.
Defender a volta de uma ditadura não é uma ideologia política, porque se trata de advogar em favor da suspensão das liberdades individuais, do cerceamento do direito à livre expressão do pensamento de cada indivíduo e dar todo o poder a poucos para determinar o que o restante dos duzentos milhões de nacionais poderão, ou não poderão fazer.
            Os que defendem essa ideia absurda de um novo golpe militar argumentam que nos tempos da ditadura o Brasil desenvolveu-se, ou talvez seja mais correto dizer cresceu de forma acentuada e acelerada. Todavia, o que esse pessoal não diz, muitos porque não querem, outros porque não sabem, pois são alienados é que as obras estruturantes, a maioria delas de grande relevância, foram feitas com dinheiro de seguidos empréstimos no exterior. Muitas obras foram deveras importantes, mas, faltou fazer o livro caixa para evitar que o país ficasse tão endividado como ficou, ao ponto do primeiro governo civil, de José Sarney, ter sido obrigado a decretar moratória, colocando o Brasil em um limbo econômico como poucas vezes se viu.
            Eu nunca fui simpatizante do PT, e por isso fico muito à vontade para dizer que acho que tem muita coisa que tem dado certo, e tem tantas outras que são grandes equívocos dessa sequência de governos petistas, como o enfraquecimento de respeitadas empresas estatal, como Eletrobras e Petrobras. Entretanto, comungo da ideia daqueles que entendem que, se o povo não está satisfeito com o governo que aí está, que o mande para casa no dia 5 de outubro, quando vai haver eleição. Então, vai estar na ponta dos dedos de cada cidadão decidir se quer que continue como está, ou se deseja trocar. Esse é o único caminho sensato, porque essa conversa de que uma meia dúzia sabe o que é bom para todos nunca me convenceu e nunca funcionou em lugar nenhum.
            Passados cinquenta anos, eu jamais senti saudades da ditadura, porque mesmo vindo de uma família humilde, fui criado em um ambiente onde se respirava política. Meus avós maternos, e mais tarde meus pais, foram sempre adeptos da democracia. Ademais, sofri na pele na minha atividade profissional, tanto de radialista, quanto de jornalista, as agruras da falta de liberdade de expressão e até da limitação da liberdade individual. Justifico meu argumento com alguns fatos que relatarei a seguir.
            Em 1978, o general Ernesto Geisel, então, presidente da República visitou Santarém. Naquele tempo eu gostava da bater um violão, e ainda se faziam muitas serestas na minha cidade de origem. Na madrugada do dia em que o ex-presidente chegaria, lá pelas duas da manhã eu voltava para casa juntamente com outro seresteiro, quando de repente fomos surpreendidos por alguns militares do exército, que estavam debaixo dos frondosos pés de acácia da Avenida São Sebastião, em frente ao colégio Santa Clara. Confesso que o susto foi grande.
            Fomos cercados e a bordados rapidamente. Documentos, disse o superior do grupo. Mostramos os documentos, que estavam em dia. De onde vocês estão vindo e para onde vão, perguntou o dito cujo. Estamos vindo da casa de um amigo, respondemos, e vamos para casa dormir, respondi. O militar nos encarou com cara de poucos amigos e sentenciou: vão pra casa, mesmo! Não quero encontrar vocês por aí. E se a gente já estava mesmo a caminho de caso, mais depressa nós chegamos.
            Trabalhando na Rádio Rural de Santarém por quatorze anos, a partir de 1971, nos famosos Anos de Chumbo, eu e alguns dos meus contemporâneos companheiros de trabalho vivemos diversas experiências que nunca serão esquecidas. Todas elas por obra e graça do aparato de repressão do regime ditatorial.
            Censura – A Censura era cruel, muito cruel. Estava presente em todos os momentos das nossas atividades radiofônicas e jornalísticas. Naqueles anos em que ocupei a função de diretor de programação da Rádio Rural, todas as emissoras de rádio do Brasil eram obrigadas a mandar com vinte e quatro horas de antecedência, a programação completa do dia seguinte. Isso incluía a obrigatoriedade de entregar três ou quatro enormes folhas de papel datilografadas, contendo os nomes dos programas e os títulos de todas as músicas com os seus respectivos cantores e compositores. Era terminantemente proibido rodar qualquer música que estivesse fora do roteiro de programação. Quando chegava um cantor em visita à cidade, se o disco que estivesse lançando não estivesse na programação, para roda alguma música do novo disco a gente precisava enviar um ofício daquela excepcionalidade. A Censura costuma aprovar. Mas, tinha o poder de vetar, se o censor assim desejasse. Ele era o senhor absoluto da programação.
            Era tanto absurdo, que alcançava até um simples jogo de futebol que a emissora quisesse transmitir de última hora. Eram outros tempos, em se falando de tecnologia. Os jogos de fora eram transmitidos em cadeia com outras rádios, sendo necessário receber o sinal via Embratel. Muitos desses jogos o departamento comercial vendia em cima da hora, pois era preciso patrocínio extra para cobrir o custo de Embratel e aproveitava-se para reforçar o caixa da rádio. Pois não é que se o tal jogo não fizesse parte do roteiro entregue no dia anterior, a retransmissão só poderia acontecer depois de se encaminhar um ofício para o Departamento de Censura da Polícia Federal! Se o agente da PF entesasse de não liberar, não haveria retransmissão nenhuma.
            Em 1976, momentos antes de começar uma partida entre São Raimundo e São Francisco, o famoso clássico Rai x Fran, no velho estádio Elinaldo Barbosa, houve uma discussão entre um sargento da Polícia Militar e um agente da Polícia Federal. O fato deu-se bem na frente da cabine da Rádio Rural, onde já estava a equipe de esportes da emissora. Eu e o confrade Osvaldo de Andrade estávamos no comando da jornada. Ele como narrador do jogo que estava para começar e eu como comentarista. De repente os dois sacaram suas armas e ficaram apontando um para o outro, ameaçando atirar. Foi uma correria enorme de torcedores desesperados com o que poderia acontecer.
            Conscientes do nosso papel de profissionais da imprensa, eu e o Osvaldo relatamos tudo o que se sucedia naquele momento, fazendo críticas  severas ao comportamento daqueles dois policiais, que deveriam dar segurança ao povo, em vez de estar colocando em risco a integridade física dos presentes. Foi exatamente por essa linha que eu direcionei o meu comentário. Mas, nos rendeu dissabores.
            O jogo começou, não faço a menor ideia de quem ganhou, ou se empatou, porque o que ficou marcado na memória foi o que viria a acontecer no dia seguinte. Mal cheguei à rádio, o gerente Manuel Dutra estava me esperando para conversar em sua sala. Ele foi logo dizendo que tinha recebido uma intimação do comandante do 3º. Batalhão de Polícia Militar, tenente coronel Ailton Guimarães. O documento exigia que eu e o Osvaldo estivéssemos no quartel da PM às nove horas em ponto. E lá fomos nós.
            Manuel Dutra nos orientou a dizer apenas sim ou não, pois do contrário corríamos o risco de ficar por lá mesmo. Chegando ao local fomos encaminhados para uma sala onde havia uma grande mesa de reuniões. Pouco depois entrou o avantajado coronel, com cara de poucos amigos. O qual foi logo perguntando para mim o que tinha acontecido. Relatei em detalhes, relato que foi confirmado pelo Osvaldo de Andrade.  

            Quando terminamos de falar, o comandante perguntou se eu não achava que a gente tinha se excedido. No meu entendimento, disse eu, quem se excedeu foram os dois policiais, que deveriam zelar pela segurança das pessoas, em vez de colocar em risco a vida de quem nada tinha a ver com suas desavenças. Está bem, disse o coronel, mas, daqui pra frente é bom vocês tomarem cuidado com o que dizem. Ou seja: os caras que representavam aquele regime fizeram a lambança e nós é que fomos repreendidos. Por tudo isso, e por muito mais do que vi e vivenciei, não posso ter saudades dos tempos da ditadura.

*Artigo publicado na edição 177 do Jornal do Comércio, que está circulando

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