domingo, setembro 08, 2019

Manuel Dutra - Ao ler e ouvir tanta estupidez do capitão "presidente" como de outros personagens do atual governo sobre os povos indígenas e as suas reservas, como se estes fossem inimigos da Pátria, lembro-me de outro militar que disse, em relação aos indígenas: "Morrer se preciso for, matar nunca".

Foi o general, depois marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o oposto da criminosa frase de Bolsonaro antes de ser presidente, pouco diferente do que afirma agora. Disse Bolsonaro:"Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”.

A seguir, retiro do meu arquivo uma entrevista que fiz com quem conviveu com Rondon e com ele trabalhou, Estolano Alves Carneiro, em que ele relata a ação e as atitudes do general na sua relação com os índios da Amazônia, durante a penetração de militares e civis para instalar linhas de telegrafia pelo interior do País, verificar fronteiras e manter contato com inúmeras grupos indígenas.

A seguir, a entrevista com Estolano, filho de Óbidos, no Pará. O título original da matéria jornalística é "Com Rondon pela Amazônia":

Por Manuel Dutra

"Aí o general falou na língua dos índios, a velha respondeu; falou em outra, ela respondeu; falou em mais uma língua, ela respondeu também”. Ao final do desafio poliglota, a índia acabou ganhando de Rondon, que chegou a dominar doze idiomas indígenas. Depois de falar as doze línguas que Rondon conhecia, a índia falou mais quatro das quais o general não conhecia nada.

"Qualquer um de nós que achasse graça ou fizesse mangação de um índio era logo repreendido pelo general; ele não gostava que a gente fizesse qualquer coisa que desagradasse os índios, que ele dizia que eram gente como nós e que eram tão inteligentes ou até mesmo mais inteligentes que nós. Era por isso que o índio Etelvino, que foi dado de presente pro general, vivia no meio da gente e era tratado como qualquer um de nós da comissão".

O relato é de Estolano Alves Carneiro que, às vésperas de completar 80 anos é, se não o último, um dos últimos remanescentes da grande expedição organizada pelo Marechal Rondon, de Óbidos até a Cordilheira de Tumucumaque, das muitas que ele protagonizou pelos infindáveis sertões brasileiros com a finalidade de inspecionar linhas de fronteiras, colocar marcos entre o Brasil e países vizinhos e desbravar terras ainda virgens.

Traído aqui e acolá pela memória, Estolano, hoje vivendo em Santarém, conta uma história que coincide em linhas gerais com o relato do cronista da comissão, Gastão Cruls, publicado em primeira edição dois anos após a viagem, em 1930, sob o título “A Amazônia que eu vi”. A expedição da qual participou Estolano durou quatro meses e tinha como principal objetivo a verificação das linhas demarcatórias entre o Brasil e a Guiana Holandesa.
Em Óbidos
Estolano foi contratado em Óbidos, aos 25 anos, pouco tempo depois de haver deixado o Exército, no qual serviu como soldado anspeçada, designativo antigo para o posto entre soldado raso e cabo. Ele entrou para a Força aos 15 anos, engajando a seguir pelo período de oito anos. Serviu, entre outras unidades, no Primeiro Grupo de Artilharia Pesada, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Tomou parte na revolta de 1924, quando seu grupo saiu do Rio para atacar os revoltosos de São Paulo.

Sua formação militar foi fator decisivo na seleção para integrar a expedição de Rondon, que saiu de Óbidos no dia 13 de setembro de 1928, levando cerca de cem homens, dezenas de canoas, centenas de remos adquiridos em Santarém, e tudo mais que uma longa permanência na selva exigia - alimentos naturais e em conserva, médicos e remédios, mosquiteiros, armas e munições, caçadores, pescadores, carpinteiros, mateiros avezados na solidão da floresta e, acima de tudo, muita disciplina imposta “pelo general”, que não descuidava da doutrinação dos homens a respeito dos objetivos nobres da aventura. Até um serviço de imprensa havia.

Estolano conta que, apesar da distância e das semanas seguidas a bom remar contra as cachoeiras, o isolamento era quebrado a cada manhã quando um oficial do estado-maior de Rondon trazia, copiadas à mão, as notícias do Brasil e do mundo que conseguia à noite, através do ainda rudimentar equipamento de telégrafo.

Oriximiná
O grupo deixou Óbidos em direção a Oriximiná viajando numa lancha a vapor, subindo o Trombetas, até encontrar o Erepecuru ou Cuminá, cuja maior extensão compõe-se de cachoeiras. A partir daqui, a viagem fez-se em canoas, com os homens de Rondon ora puxando as montarias em meio às águas revoltas, ora carregando-as no contorno de quedas muito fortes e levando, nesses trechos, os fardos de suprimentos às costas. “Quando descíamos ou subíamos alguma cachoeira, o general sempre mandava que apenas dois ou três homens fossem em cada canoa, porque, no caso de uma tragédia, só poucos morreriam”, recorda Estolano, acrescentando que, mesmo diante de tantos perigos, ninguém morreu na expedição.

Somente a malária infestou a turma de mateiros. Os doentes eram logo socorridos pelos médicos, que Estolano afirma terem sido cinco. É possível que ele confunda a presença de enfermeiros como sendo médicos. “Duma feita - conta ele - eu e mais cinco companheiros nos adiantamos, a mando do general, pra cima de uma cachoeira, já perto da serra de Tumucumaque; lá, pouco trabalho pudemos fazer, pois a febre nos atacou. Eu já nem podia me levantar, tão fraco fiquei. O que estava melhor, no grupo, foi procurar socorro. Tinha um colega de Óbidos que só pedia, certo de que ia morrer, pra ser enterrado num buraco bem fundo, pra onça não comer ele depois de morto”. Mas não morreu ninguém do grupo, logo encontrado depois de uns cinco dias de febre, e foram todos socorridos por um médico e pelo próprio general.

Estolano recorda como foi a chegada de Rondon ao local onde estava seu grupo avançado, já à beira do desespero: “Eu estava deitado, já sem poder andar, na areia, perto da barraca do acampamento. De repente, ouvimos gritos pra banda da cachoeira. Aí eu disse pro que estava melhorzinho: vai logo com a canoa que parece que é o general que está chegando; se a canoa não chegar logo, ele salta n’água e vem nadando com roupa e tudo”. A partir daí começou a descida em direção aos acampamentos anteriores.

Chimarrão
Rondon não fumava, odiava álcool, bebia muito chimarrão e só comia caça quando assistia a seu preparo. Durante dois meses Estolano foi o encarregado de cuidar dos famosos cachorros do general. Os cães, segundo ele, formavam em torno de Rondon uma verdadeira barreira de proteção e nenhum homem da expedição se aproximava do respeitado chefe sem que este acalmasse os cachorros. Numa gaiola, o general levava também três outros companheiros inseparáveis - um galo e duas galinhas. “Pra quê esses animais?”, perguntaram uma vez ao general. E ele respondeu que era para ouvir o canto do galo pela madrugada, colher os ovos das galinhas e assim criar um ambiente mais humanizado naquelas lonjuras da floresta. Só que os ovos - conta Estolano - eram frequentemente roubados do ninho, na gaiola, pelos homens do general, que não dava muita importância ao fato.

Saindo sempre em grupos de seis homens para incursões avançadas, Estolano conta que, certa vez, passou com seus companheiros uma semana sem rumo, “porque tínhamos perdido a bússola”. Daí, diz ele, “fomos parar em território venezuelano, onde um bando de mateiros nos deu o rumo e nós voltamos”.

Índia poliglota
De outra feita o general resolveu exibir para a turma seus excepcionais dotes linguísticos. Estavam todos perto de uma tribo, cujo cacique - diz Estolano - surpreendentemente falava português. “Ele (o general) estava, então, prosando com o cacique, que passou de repente a falar na gíria deles. O general respondeu e o cacique ficou admirado. Para testar os conhecimentos do general, o cacique chamou uma índia, já meio velha, pra falar com ele. E nós todos em volta, assistindo; aí o general falou na língua dos índios, a velha respondeu; falou em outra, ela respondeu; falou em mais uma, ela respondeu também”, recorda Estolano, acrescentando que, ao cabo do desafio poliglota, a índia velha acabou ganhando de Rondon, que, diz ele, chegou a dominar doze idiomas indígenas. Depois de falar as doze línguas que Rondon conhecia, a índia falou mais quatro das quais o general não conhecia nada. O episódio foi aproveitado por Rondon para mostrar aos expedicionários que entre os indígenas também há pessoas muito inteligentes e capazes e que não são indivíduos inferiores aos brancos.

Mesmo diante da amabilidade que Rondon conseguia estabelecer com os indígenas ao longo da expedição, os componentes do grupo sempre temiam os índios quando o general não estava por perto. Estolano conta que, certo dia, ele e mais trinta companheiros, em seis canoas, subiam por uma cachoeira rumo ao posto avançado onde o chefe os esperava. “De repente, apareceram na beira do rio uns 50 índios; nós ficamos com medo, mas tudo que eles fizeram foi chegar perto da canoa em que eu estava, puxaram-nos para a beira e, de um empurrão só, eles suspenderam a canoa com todos nós dentro e nos carregaram até o mato; lá nos tiraram, sem reação da nossa parte, nossos chapéus, cinturões e facas”.

Depois de ganharem arcos e flechas em troca, os expedicionários subiram o Cuminá, em cujas cabeceiras encontraram um misterioso cemitério na mata. Algumas cruzes já destruídas pelo tempo levavam a crer que se tratava de um cemitério de seringueiros ou mateiros dizimados pela malária. “Não fosse a febre, aquilo era um paraíso, muito peixe, muita caça e a amizade do general com a gente, tudo isso ainda me dá saudades”, diz hoje Estolano.

A bomba pioneira
Sua aventura ainda é viva na desgastada memória e tudo fica reforçado por um acontecimento todo especial: “Eram quatro horas da tarde - recorda - e chovia muito; eu estava no acampamento quando o dr. Benjamim, o filho de Rondon, gritou lá fora: quem é Estolano Alves Carneiro? Eu prontamente me apresentei e ele disse para eu falar imediatamente com o general.

O chefe mandou, então, todos entrarem em forma, ao som da corneta, e anunciou, solenemente, que acabava de chegar de Óbidos um telegrama anunciando que dona Iracema havia dado à luz um filho. Iracema é, até hoje, a mulher de Estolano, que recebia a notícia do nascimento do primeiro de seus 16 filhos. O casal conta 85 netos e 22 bisnetos. Ao fim da expedição, tanto Estolano como dezenas de companheiros seus retornaram a Óbidos debilitados pela malária, que nos últimos dois meses vitimou quase todos os braçais contratados em Óbidos. “Os oficiais quase não pegavam a febre porque não descuidavam dos mosquiteiros”, relembra ele, dizendo que teve que ir para Belém tratar-se, mas que terminou por curar-se com casca de sacaca raspada em língua de pirarucu.

Embora Estolano não se recorde do fato, o relato do cronista da comissão revela que, na expedição de Rondon ao longo do Cuminá até a Guiana Holandesa, encontrava-se um dos pioneiros da pesca predatória com bombas, hoje tão comum e tão condenada prática de destruição de cardumes no Baixo Amazonas. Diz ele que, no dia 15 de outubro de 1928 “José Cândido, graças a uma bomba, fez pescaria maravilhosa: muitas dezenas de peixes. Entre eles vieram abundantes exemplares de um tipo que é novo para o general. Chamam-no aqui de peixe-cana. É chato, arredondado, com pele cinzenta e a cabeça mais escura”, conta Gastão Cruls.

(Jornal O Liberal, Belém, 13.6.82)

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