Manuel Dutra - Insisto com frequência com meus alunos do curso de jornalismo que escrever é um momento do ler, como aliás, já disseram respeitáveis pesquisadores. E cito um exemplo: quando eu estava no dia a dia da reportagem percebia claramente que, nos momentos em que eu negligenciava as leituras, percebia que o ato de escrever, produzir uma reportagem, também sofria não de uma paralisia, mas de um certo torpor que me aborrecia.
Ao jornalista é exigido realizar obrigatoriamente duas formas de leitura, lembrando Paulo Freire. A leitura do mundo e a leitura da palavra. Sem estas, compromete-se o ato de escrever.
Faço aqui um paralelo de quando eu dava aulas de Português no segundo grau, em colégio público. Certo dia fui chamado à diretoria para ouvir isto: O senhor está utilizando o tempo das aulas com atividade que não consta do programa. Perguntei: como assim? A diretora retomou a palavra: O senhor está utilizando grande parte do tempo com leituras de recortes de jornais e revistas, por quê? O senhor deve entender que nosso programa exige a gramática de Domingos Paschoal Cegalla.
De fato, Cegalla era um excelente gramático, poeta e escritor, porém, ficar exclusivamente com ele seria reduzir a língua portuguesa e estimular o hábito de ler apenas por meio de uma gramática e de autor específico. E o restante da vida, a percepção do dia a dia, a informação sobre o chão que pisamos. Afinal, a língua que falamos se produz no seio da sociedade, com avanços e recuos. Porém... era pra ficar só com o Cegalla e seu bom livro.
Afinal, por que razão nos envolvemos num senso comum que distingue a teoria (contemplação do mundo) com a "prática"? Os filósofos nos mostram que a teoria é o conhecimento especulativo, puramente racional. O substantivo theoría significa ação de contemplar, olhar, examinar, especular e também vista ou espetáculo. Também pode ser entendido como forma de pensar e entender algum fenômeno a partir da observação. Será que os bons autores, ao produzirem, por exemplo, um romance, uma poesia, ao recriarem histórias de vida tão maravilhosamente relatadas, não estariam, eles também, fazendo teoria, ou seja contemplando e mundo e oferecendo-nos, especialmente a nós professores e jornalistas, a possibilidade e a capacidade de melhor compreendermos os acontecimentos que relatamos sob formas diversas?
Cada um tem a sua lista de livros preferidos. Para um jornalista, há obras que podemos considerar indispensáveis, pela riqueza dos relatos e origem autoral. São muitos os livros que um jornalista deve apreciar, e qualquer lista será sempre capenga e segue o gosto de quem produz a lista.
Depois desta pretensa introdução, enumero a seguir alguns livros que costumo indicar aos meus alunos, alguns como leitura obrigatória, outros opcionais. Mas falo de cada um desses livros, tentando entusiasmar os jovens a penetrarem nas suas páginas.
Os livros deste semestre que começa dia 18:
"Naqueles tempos, merda não era insulto abstrato, mas artefato ofensivo, feito o que lançaram na cara de Palma Cavalão, que aceitou a merda de ânimo inteiro..." (Haroldo Maranhão, paraense)
“Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo” (García Márquez)
A seguir, algumas sugestões e obrigações:
1. A sangue frio, de Truman Capote. Clássico do chamado novo jornalismo norte-americano, é uma grande reportagem sobre o assassinato de uma família do vilarejo de Holcomb, no Kansas, que Capote esmiuçou, produzindo inúmeras reportagens para o N. Y. Times, que depois se transformaram nesse belíssimo trabalho de investigação jornalística. É um livro para ser lido com vários olhos para enxergar: o método da investigação jornalística, o conteúdo da história, a persistência na busca de fontes e o cuidado em checar os dados obtidos. Ao fim dessa imensa reportagem, Capote descobriu o que a polícia não havia descoberto: os assassinos do dono da fazenda River Valley, Herbert Clutter e sua família. Eram fugitivos da cadeia e, desta vez, foram para a forca, graças à reportagem de Capote.
2. Os Sertões, de Euclides da Cunha. Trata da guerra de Canudos, na Bahia (1896-1897). Euclides da Cunha presenciou uma parte desta guerra como correspondente do jornal O Estado de São Paulo e, ao retornar, escreveu um dos maiores livros já escritos por um brasileiro. Pertence, ao mesmo tempo, à prosa científica e à prosa artística.
3. Padre Cícero, poder, fé e guerra no sertão, do jornalista cearense Lira Neto. Esta grande reportagem especial, lançada em 2009, fala por meio de seu título: a miscelânea do misticismo do interior do Brasil em confronto com as exigências canônicas da hierarquia católica. Em suas 557 páginas, é editado pela Companhia das Letras. A biografia foi feita com base na consulta a arquivos secretos da Igreja Católica no Vaticano, em um trabalho de dedicação exclusiva durante dois anos e meio. O autor descobriu que o Papa Bento 16 teve interesse em colocar padre Cícero no caminho para se tornar um santo brasileiro, com a finalidade de conter o avanço das igrejas evangélicas no país.
Político e com fama de milagreiro, Padre Cícero era filiado ao extinto Partido Republicano Conservador (PRC). Foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, quando o povoado foi elevado a cidade. Em 1926 foi eleito deputado federal, porém não chegou a assumir o cargo.
Em 4 de outubro de 1911, o padre Cícero e outros 16 líderes políticos da região se reuniram em Juazeiro e firmaram um acordo de cooperação mútua bem como o compromisso de apoiar o governador Antônio Pinto Nogueira Accioli. O encontro recebeu a alcunha de Pacto dos Coronéis, sendo apontado como uma importante passagem na história do coronelismo brasileiro.
4. Rio de Raivas, de Haroldo Maranhão (especialmente para jornalistas da Amazônia). A narrativa se concentra na vida política de Belém, no Pará, girando em torno de mil futricas que tinham a imprensa como local privilegiado das intrigas. É uma meia ficção, em que o autor recria os nomes de personagens da vida real. Um breve trecho da contracapa da edição da Francisco Alves, de 1987: "Naqueles tempos, merda não era insulto abstrato, mas artefato ofensivo, feito o que lançaram na cara de Palma Cavalão, que aceitou a merda de ânimo inteiro..."
5. Hiroshima, de John Hersey, apresentada pela Companhia das Letras, na edição de 2002, como a mais importante reportagem do século XX, um retrato de seis sobreviventes da bomba atômica, um ano depois da explosão...". Assim começa a reportagem: "No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba explodiu sobre Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundação do Estanho do Leste, acabava de sentar à sua mesa...". Após a leitura que, como diz aquele cartola do futebol, só termina quando acaba, o leitor vai perceber o que é um grande texto jornalístico, denso e ao mesmo tempo de fácil leitura.
6. O Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway. Ficção mais que realista, quase uma reportagem das tantas que Hemingway fez mundo afora, imortalizando-se pelas matérias jornalísticas da guerra civil e da Espanha, rendendo o clássico “Por quem os sinos dobram”, que virou um dos filmes mais vistos até hoje. Ele escreve o Velho e o Mar como quem produz uma reportagem, em torno dos personagens centrais Santiago, o velho, e Manolim, o menino. A luta do velho pescador com o imenso peixe em alto mar parece refletir os dramas reais da vida de cada um e, em particular do próprio autor, que termina por suicidar-se.
7. As noites das grandes fogueiras, de Domingos Meireles, é um espetacular relato da trajetória da Coluna Prestes ao completar 70 anos. Domingos começou a se interessar pela história da Coluna Prestes em 1974, ao entrevistar oficiais que participaram do levante paulista de 1924 e marcharam com a Coluna. Com o esboço do mapa de campanha desenhado pelo general Emígdio Miranda e os marechais Juarez Távora e Cordeiro de Farias, reconstituiu a marcha da Coluna para o Jornal da Tarde. Teve acesso a dados surpreendentes, como o plano da oposição paraguaia de contar com a ajuda dos rebeldes para derrubar o governo de seu país. As noites das grandes fogueiras fala das raízes da rebelião de 1924, quando o grupo de tenentes do Exército que dois anos antes participara do levante do Forte de Copacabana toma de assalto os quartéis da Força Pública de São Paulo.
8. Rota 66, de - Caco Barcellos, livro-reportagem construído dentro de uma investigação de mais de um ano. A história fala sobre a identificação de cerca de 4.200 pessoas mortas pela Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), considerado o maior batalhão da polícia militar e mais “matador” do país.
Publicado em 1992, o livro traz nomes e detalhes de assassinatos cometidos por oficiais da ROTA contra pessoas inocentes ou apenas suspeitas. Na época que as denúncias foram anunciadas por meio da repercussão do livro, o jornalista precisou trabalhar no exterior, devido às várias ameaças sofridas no país.
9. Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Em menção ao presídio do Carandiru que, em 1992, sofreu uma rebelião e matou 111 detentos, o jornalista e médico Drauzio Varella narra como foi seu trabalho voluntário. Os relatos revelam como ele conscientizou os internos dos riscos e perigos da AIDS e como ajudava a socorrer a mais variadas e precárias situações de emergências dos presos. O livro propõe exibir uma outra visão sobre a organização, contrato social do presídio, alerta sobre os direitos humanos e problemas da sociedade brasileira (Curso de Jornalismo da Unama).
10. Notícia de um sequestro, de Gabriel García Márquez. Considerado um dos nomes mais importantes da literatura mundial, o autor colombiano Gabriel García Márquez descreve como traficantes realizam sequestros. Em detalhes, ele relata sobre cativeiros e negociações dos criminosos com as famílias das vítimas e o governo. Tudo baseado em entrevistas que ele mesmo realizou com as pessoas de fatos que realmente ocorreram. Notícia de um Sequestro se baseia, sobretudo, nos crimes cometidos por traficantes, nos anos 1990, na Colômbia (Indicado no Curso da Unama)
11 e 12. Memória de minhas putas tristes e Relato de um náufrago, de García Márquez. Duas obras basilares para compreender a alma e o inimitável talento do grande escritor que começou como repórter, com tramas bem ao gosto latino-americano. Um breve trecho de Memórias: ““Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo. Lá pelos meus 20 anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo (...) Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune...”
13. Nova História da Cabanagem: seis teses revisam a insurreição que incendiou o Grão-Pará em 1835, do jornalista paraense Sérgio Buarque de Gusmão. Pesquisa profunda desse jornalista residente em São Paulo, sua leitura pode nos levar a indagar: De onde veio a palavra Cabano? O senso comum e os livrinhos de história que circulam pelas nossas escolas fundamentais repetem que a palavra deriva do fato de os bravos guerreiros morarem em cabanas. Não foi só isso, como explica Sérgio Buarque de Gusmão. Tratava-se de uma palavra inventada pelos adversários dos revoltosos, no sentido de desclassificá-los.
Gusmão mostra como a guerra civil da Amazônia é duramente boicotada nas aulas de história, na bibliografia e no senso comum, pela simples razão de que a derrota passageira das forças dominantes no Grão-Pará naquele início de janeiro de 1835, quando a guerra começou, tornou-se vitória dos mandões de sempre, vitória de aparência longínqua, mas que conserva seu ideário no terceiro milênio: impedir que a Cabanagem se torne conhecida dos remanescentes daqueles que, há 183 anos, deixaram o medo e a submissão de lado e partiram para a luta corpo a corpo.
14. 1932, a Revolução constitucionalista do Baixo Amazonas, de Walter Pinto. Em dezembro de 2014, quando fiz uma brevíssima resenha do livro de Walter Pinto, assim escrevi, sentado numa das cadeiras do setor de conexões do aeroporto de São Paulo: “A coincidência é que eu estava lendo sobre um importantíssimo fato social e militar ocorrido na Amazônia nos idos de 1932, ano em que os habitantes de Óbidos ainda sentiam o cheiro da fumaça do bombardeio da cidade em 1924. Mesmo à distância, a Cidade Atalaia participara ativamente da revolução paulista. Lendo sobre Óbidos, eu me achava, naquele momento, em meio a uma guerra desarmada, no centro de São Paulo; as duas cidades protagonistas do excelente livro de Walter Pinto”.
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