Na edição passa, de número 235, ela me mandou o conto VERÃO COM TACACÁ, que foi publicado para página 19, que republico em sua homenagem.
Jota Parente
--------------------------------
Verão com tacaca
Junho
são dias de preguiça. Sensação estimulada pelo anterior
cansaço
das festanças que acabam, invariavelmente, em princípio de julho. É
a ressaca
das festas misturada à ansiedade do verão que está começando.
Preguiça
gostosa de dever mais do que realizado, aquele que começa nos
ensaios
das quadrilhas e só acaba com a última coreografia aplaudida, de pé,
por
tamanha gente.
Aqui,
o desavisado sulista quer paçoca e amendoim torrado, ou
então,
batata doce, pipoca e quentão. Mas o cardápio é outro, bem variado.
Forte.
Valente, como só a gente do Norte sabe ser. São dias de vatapá,
tucupi,
maniçoba, tacacá e mungunzá. Época de dançar até os pés se
derreterem de dor e satisfação.
Preguiça de balançar na rede, imaginando, entre o vai e volta, que
festa vai
ter na próxima semana. Festa sim, porque o povo do Norte além de
valente é
festeiro e tem desculpa para todas as festas. É o casamento, o dia
da
padroeira, São João e Santo Antônio, apresentação de carimbó, o sacolejo
do brega,
batizado e churrasquinho no portão de casa com família e amigos.
Vem de
longe o grito de um gol, com certeza tem Flamengo na
jogada,
time que não é só do Rio, é das cidades do Norte, aquelas do rincão
do Pará,
ribeirinhas do Tapajós. Tem gol na garganta do nativo, na dos
importados do Maranhão, Ceará, Piauí, vez por
outra Minas, Goiás e São
Paulo.
No
verão, meninos que são das ruas, dos lava-carros, das feiras,
fazem um
espetáculo à parte. Roubam a cena no centro da cidade, bem na
frente do
rio. Brincam de trapezistas do espaço, onde depois de muitos
volteios
no ar, repousam os corpos no rio, agora satisfeitos pela
malandragem conseguida. São pássaros sem asas,
destemidos, a se jogarem das
alturas
para alcançarem, lá embaixo, um pedaço do Tapajós. O sol bate em
cheio nos
corpos dos brincantes, faz brilhar a água que deles respinga,
brilho
ainda maior continua nos risos e na alegria da irresponsável
liberdade
da meninice.
Tem rio, tem
rede, festa e valentia. Tem vontade de progresso, de
dias mais
fartos, de comércio enricado, de comerciante virar empresário. A
vontade
do valente é virar o jogo e não ter mais que contar tostões.
Caminhando pelas ruas, vê-se inusitado comércio. Nas chamadas de
principais, desfile de marca, griffe com cara
de bacana, preço lá para cima.
Mas é ali
nas transversais, que o verdadeiro Brasil acontece, o que não
copia
ninguém, mundo dos meninos trapezistas, dos lavadores de carro. Todos.
Panelas
e bacias de alumínio penduradas no teto, poeticamente
entrelaçadas com os rolos de fumo de corda.
Sacos de arroz, farinha e feijão
nas
portas, tais como cartões de visita, só a espera de ir para o caldeirão
dos
Raimundos que também são Nonatos. Os sacos lembram o Brasil colônia,
tendo
como companheiros enormes cachos de banana, ora verdes, ora
amareladas. Saborosas bananas.
Lá para baixo
o Porto da Balsa que incansavelmente, carrega e
descarrega o fardo dos anos desta gente
valente e festeira, que leva na
sacola,
para o outro lado do rio, a compra da semana. Mas nem sempre é
assim,
comparece também a tristeza de não se ter conseguido o emprego na
cidade
que nem grande é.
Os dias
de preguiça gostosa que também são os de verão, trazem
para as
calçadas beira-rio ,os ambulantes de açaí. Só dá aprendiz de
nortista
se lambuzando do vermelho quase roxo, aprendendo a não engasgar com
a
farinha. De repente, só de repente, sobe lá para o céu uma teimosa
nuvenzinha escapada da boca do pedestre. É
farinha, abestado, vê se come
direito.
Ano que
vem vai ser bem melhor. Se Deus quiser, o mês de junho vai
render
mais festança, e durante o resto do ano, entre o vai e vem da balsa,
o valente
lavrador, que todo sábado atravessa o rio, vai sentar na porta do
comércio
do seu Raimundo, aquele, o comerciante festeiro, para juntos,
imaginarem que no verão, vai dar muito peixe
no bom e velho Tapajós.
Outros turistas
haverão de parar junto a este mesmo rio para
admirarem
os meninos de corpos brilhantes que por segundos deixam de ser das
ruas,
para comporem o balet do ar. São estrelas desafiando a adversidade da
vida, por
breve momento, gente muito feliz.
O
Brasil é aqui, o resto é perfumaria. Nem shopíngue, nem
marketíngue, tem mesmo, no meio da cidade, o
quilômetro um da
Transamazônica. Por debaixo do asfalto quente,
coração de homem que vendeu
lavoura
de café lá no Sul para empregar dinheiro no sonho amazonense. Tem
sangue de
índio dizimado, cultura castrada, garimpo e malária. Dinheiro de
contribuinte e palavra sem valor de quem
governou em nome da pátria amada.
São
dias assim, de gente brasileira, que bem lá no derradeiro da
alma sabe
que é preciso pular da rede e deixar que a esperança ceda lugar à
coragem.
Vencer. São dias de eterno verão.
Jussara Whitaker
Socióloga. Doutora em Educação.
Escritora
contista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário