Antenor Pereira Giovannini (*)
As óticas podem ser muitas: pais, avós, tios ou que se bem quiser. O fato que é quase impossível não pensar no que ocorreu com a pequena Isabella naquele fatídico final de sábado em um apartamento de classe média alta em São Paulo. Uma barbárie com requintes de crueldade. Ato de verdadeira bestialidade contra a pequena indefesa fazendo com que o episódio fuja à capacidade de compreensão e explicação.
Nem por isso, o trágico acontecimento ficou a salvo do apetite insaciável de interesses outros. Em nome de um alegado direito da sociedade à ampla divulgação dos fatos, a pequena vítima tem sido exposta diuturnamente por uma mídia em grau incontido de excitação. A televisão, de um modo geral, e algumas emissoras em particular, vem noticiando o caso de forma absurdamente sensacionalista, como se a criança fosse um jogo. E, o jogo se chama audiência. E, em nome dessa audiência instalou-se um vale tudo onde não há qualquer importância se a forma com que a divulgação é conduzida choque cada dia mais. Pouco importa se isso acaba levando que incultos e desavisados a cederem à tentação de fazer justiça com as próprias mãos em quem ainda se encontra apenas como suspeito.
Será que efetivamente a identificação da autoria dessa bestialidade é o aspecto mais importante?
Como diz um grande amigo, um ato desses compromete toda espécie humana. Afinal, seja lá quem tenha feito isso, é um dos nossos, um membro da nossa raça. Não foi um tigre, um lobisomem ou um habitante de Júpiter. Foi alguém como um de nós, ao menos na aparência. Os animais não cometem atos dessa monta. Os ditos irracionais se limitam a respeitar a cadeia alimentar. Nem peixes ferozes, nem répteis furiosos, nem aves de rapina são capazes de algo semelhante contra seus pares. Somente nós, os humanos, o fazemos. A nossa raça gera um da Vinci, um Mozart, um Bethoven, um Martin Luther King, um Oswaldo Cruz, uma Madre Thereza de Calcutá, um Pelé. E, de repente, também gera uma fera como a que vitimou a pequena Isabella.
O triste fim dessa inocente criança é, inquestionavelmente, chocante e entristecedor e sua trágica trajetória merece um respeito ilimitado.
No entanto, sua via-crúcis, gera uma outra pergunta:
Quantas Isabellas são assassinadas por dia em nosso País?
Se não mortas fisicamente, mas mortas em espírito, mortas em seus anseios e principalmente assassinadas em seus sonhos. Quantas pequenas ou pré-adolescentes exploradas de todas as formas, sexualmente ou com trabalho pesado, vagueiam pelas belezas naturais deste País, salvaguardadas por um conjunto de abstrações que se deu o nome de Estatuto da Criança?
Dentre muitos, há dois pólos em que o País leva o seu descaso e leviandade ao ponto mais alto: ironicamente o começo e o fim desse caminho chamado vida. De um lado estão às crianças e os jovens que vivem a mercê de tudo e de toda podridão que o mundo moderno espalha e propaga. Na outra margem, os velhos despejados em asilos e hospitais, a quem se dedica uma torcida orquestrada com direito a banda de música e rojões para que a morte os visite mais depressa possíveis, e assim, será menos um a depender do INSS, já totalmente falido e desmoralizado.
Nas grandes cidades a cada semáforo observa-se um número cada vez maior de Isabellas ora estendendo a mão em busca de alguns centavos, ora vendendo quinquilharias exploradas por um adulto de olho no que pode levar para casa. E não se cometa a injustiça de se esquecer de nossas estradas e rios onde o tráfico de prostituição infantil (muitos incentivados pelos próprios pais) se prolifera sem que haja um controle punitivo severo para que isso seja coibido. Nessa hora somente as câmeras de televisão parecem ser capazes de enxergar.
Em casa ou fora dela, crianças são exploradas em trabalho na condição de troca por alimentos. E, ainda temos o absurdo dos abusos sexuais, muitos deles ocorridos dentro de casa e por membros da própria família, fazendo com que essas crianças sejam lançadas no mais profundo poço de penúria e causando marcas irremediáveis e poucas chances de superação.
As falhas são de todos. Passa pelo Governo. Atravessa todas as formas de educação e chega ao âmago da família. Que deveria haver mais controle, isso, com certeza deveria. Que as punições deveriam ser mais severas em crimes contra crianças, seguramente, deveriam. Que nossas escolas deveriam ser muito melhor equipadas, aparelhadas e os professores melhores preparados para lidar com todas as situações, sem dúvida, é certo. Que os pais deveriam se conscientizar da importância de gerar e expor um filho ao mundo, não há como discordar.
Mas é muita utopia. É muito lógico para um mundo ilógico que vivemos.
Tudo é tão óbvio, tão evidente, mas, ao mesmo tempo, lembra um rolo de fumaça que temporariamente impacta os sentidos e depois se perde num horizonte que igualmente parece estar se perdendo. Enquanto a fumaça persiste, só nos resta chorar por Isabella e esperar pela próxima Isabella que, com muita certeza, pode estar a alguns metros de nós.
(*) Aposentado e morador em Santarém
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