(*) Samuel Lima
Especial para o blog
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A indagação é
aparentemente simples, caro/a leitor/a: haveria algum limite para o direito à
liberdade de expressão? Ou seria algo que se sobrepõe aos demais direitos
fundamentais da pessoa humana previstos no texto da Constituição Federal? O
tema é relativamente complexo, mas é possível observar balizas constitucionais
claríssimas e que devem coexistir, no contexto da tentativa de (re) construção
democrática, em curso no país. O Art. 220 da CF (§ 1º) consagra imperativamente
esse direito, mas ao mesmo tempo indica que sejam observadas as alíneas IV, V,
X, XIII e XIV do Art. 5º. Retomaremos mais adiante.
O caso das contas secretas na sucursal suíça do banco HSBC, de origem
britânica, conhecido como “SwissLeaks” (vazamentos da Suíça), traz à luz do dia
muito mais que um escândalo que envolve evasão de receitas, sonegação e lavagem
de dinheiro. Trata-se, como pano de fundo, de um raro caso no qual o limite
econômico (e político) da retórica “liberdade de expressão” resta inconteste,
pelo menos até aqui. O esquema se refere a contas mantidas no paraíso fiscal
helvético pelo HSBC. “O banco abrigou mais de US$ 100 bilhões de 106 mil
clientes de 203 países. Os dados se referem aos anos de 2006 e/ou 2007”, como
informa o jornalista Fernando Rodrigues (do Portal UOL, acesse aqui:http://migre.me/oJdLX).
As investigações são lideradas pelo
International Consortium of Investigative Journalists (Consórcio Internacional
de Jornalistas Investigativos, o ICIJ), que compartilhou os dados com 140
jornalistas de vários países. No Brasil, o monopólio dessas informações é do
Portal UOL, do Grupo Folha de S. Paulo. Rodrigues é membro do ICIJ, entidade da
qual também fazia parte, até meados de fevereiro deste ano, o jornalista
investigativo Amaury Ribeiro Jr. (autor de “A Privataria Tucana”). “Como membro
do ICIJ desde 1997, solicitou, então, o acesso a essas informações, o que foi
negado. ‘Não estamos planejando abrir os dados para outras organizações de
mídia do Brasil por agora’” (veja o post completo aqui: http://migre.me/oJfu3), respondeu taxativamente
a jornalista argentina Marina Walker Guevara, vice-diretora do ICIJ. Outros
jornalistas brasileiros participam também do ICIJ, mas estão fora dessa
investigação como é o caso de Angelina Nunes, Marcelo Soares e Claudio
Tognolli.
Na Europa, o conflito explicitou essa
tensão permanente entre as redações e os setores comerciais de grandes jornais
como o Le Monde (França) e os ingleses Daily Telegraph e The Guardian. Neste
caso, o confronto passou a ser entre os profissionais e os donos dessas
empresas. O jornalista Carlos Castilho (do Observatório da Imprensa), escreveu
recente artigo no qual discute até que ponto o “escândalo HSBC coloca em xeque
a liberdade de expressão” (veja aqui o texto completo: http://migre.me/oJd6y).
Castilho relata um exemplo raro, do
ponto de vista ético e profissional: “No britânico Daily Telegraph, o seu
principal comentarista político, Peter Oborne, renunciou ao cargo e pediu
demissão do jornal acusando os seus proprietários de ‘fraudar os leitores’ ao
deliberadamente omitir informações relacionadas às denúncias de que o HSBC
ajudou cerca de 100 mil clientes a lavar 180 bilhões de euros (pouco mais de
meio trilhão de reais) em sua agência de Genebra, na Suíça (fonte cit.)”.
No Brasil, a cobertura “microscópica”
nas páginas d’O Globo, Folha de SP e o Estadão de SP tem a ver também com esse
viés de censura econômica aberta, sem meias palavras, muito mais que a negativa
da direção do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos de abrir os
dados para outras empresas e/ou jornalistas investigativos. Para Castilho, “os
mesmos jornais que mergulharam fundo na investigação das denúncias de Caixa 2
na Petrobras, agora ‘olham para o outro lado’ (com subserviência disfarçada, na
minha modesta visão) quando se trata de um banco que gasta por ano meio bilhão
de dólares em publicidade em todo o mundo” (cit.).
Com efeito, uma velha e
famigeradíssima “entidade esotérica”, muito conhecida dos jornalistas em
quaisquer redações do planeta, se faz presente: a censura político-econômica
corporativa. Retomo as palavras do mestre Castilho: “A retórica da
independência editorial e da liberdade de expressão nas redações ficaram
seriamente arranhadas com a reação pública ou dissimulada de muitos donos de
jornais que não tiveram dúvidas em colocar o dinheiro acima da informação na
hora de enfrentar as consequências de divulgação de um escândalo envolvendo
corrupção em escala planetária” (fonte cit.).
Voltando o texto da Constituição,
penso que há limites claros à liberdade de expressão. O que me parece mais
relevante é harmonizar o exercício desse direito com a inviolabilidade da
intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (Art. 5º, alínea X, que
prevê ainda a indenização do dano material ou moral decorrente de sua
violação). Podemos acrescentar ainda as alíneas IV (“É livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato” – algo que contamina as chamadas redes
sociais e blogosfera); o direito de resposta, jamais regulamentado pelo
Congresso Nacional (alínea V); e, por último, uma condição sine qua non para a
existência do Jornalismo como forma social de conhecimento: a garantia do
sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
A reação em cadeia dos empresários da
comunicação, aqui e alhures, transcende o constrangimento ao exercício das
liberdades de imprensa (to print, de fazer o negócio com o produto notícia) e
de expressão (to speech, direito humano essencial em qualquer democracia que se
preze). Resgato o texto do jornalista Carlos Castilho: “Conforme Roy
Greenslade, principal analista da mídia no jornal inglês The Guardian, o caso
HSBC colocou dramaticamente em evidência o aforismo de que a liberdade de
expressão na imprensa só funciona para os seus donos”. No meio jornalístico,
isso é conhecido como “liberdade de empresa”.
(*) Jornalista, professor-adjunto da
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB). É pesquisador
do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO) do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política (UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística
(objETHOS/UFSC).
Blog do Manuel Dutra