sexta-feira, setembro 17, 2021

De forma irregular, empresa já produziu 32 vezes mais ouro em mina em Itaituba do que permitido. PF investiga

Fonte: Telegrama - Uma mina de ouro encravada no meio da Amazônia superou R$ 1,1 bilhão em receita em pouco mais de um ano de operação, de acordo com a Agência Nacional de Mineração, a ANM. Além dos valores expressivos, a empresa Gana Gold Mineração chama a atenção por extrair um volume de ouro 32 vezes maior do que o estimado e operar sob uma licença irregular, apesar de ser uma atividade bilionária com alto impacto ambiental.

A empresa, que está sendo investigada pela Polícia Federal, só tem autorização para operar porque a prefeitura de Itaituba atropelou as legislações estadual e federal ao licenciar a mina – e porque a ANM fechou os olhos para a irregularidade. O caso é um exemplo da dissonância entre as instituições que deveriam proteger a Amazônia, da permissividade de governos focados em facilitar a mineração na região e do sucesso do lobby em Brasília junto a deputados federais e ministros do governo Bolsonaro.

Nos últimos seis meses, acompanhei os passos da novata Gana Gold até o primeiro bilhão. Com apenas uma mina em atividade, a empresa é líder em exploração de ouro na região Norte, representando atualmente 18% da lavra do metal no Pará, de acordo com informações do site da ANM. A alta produtividade intriga porque a operação anual prevista era de 96,53 kg de ouro, segundo informações prestadas pela própria empresa à agência reguladora do setor. Seguindo esses valores fornecidos pela Gana Gold, a mineradora deveria ter uma receita anual de cerca de R$ 30 milhões se operasse dentro da estimativa prevista na licença.

No entanto, desde 2020, a empresa declarou ganhos de mais de R$ 1 bilhão. Em apenas oito meses, ela já extrapolou em 32 vezes o estimado informado à agência para 2021. Essa produtividade não é nada comum: os números colocariam a mina acima das operações mais rentáveis no mundo, com um teor médio (quantidade de ouro por tonelada de material bruto extraído do solo) muito superior a empreendimentos vizinhos. Como a Gana consegue esse milagre? Procurei a empresa, mas ela não forneceu uma explicação.

A lucrativa mina fica dentro de uma unidade de conservação federal vizinha da Terra Indígena Munduruku, em Itaituba, município do sudoeste do Pará. É uma região que passa por uma verdadeira corrida do ouro, especialmente após o início do governo Bolsonaro – um fiel apoiador de garimpeiros que luta para aprovar a liberação de mineração dentro de terras indígenas.

É um mercado que movimenta bilhões de reais todos os anos, sendo boa parte clandestino. Mais de um quarto das 174 toneladas de ouro produzidas pelo Brasil em 2019 e 2020 tiveram origem ilegal, gerando um prejuízo de R$ 9,8 bilhões para o país, aponta estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, e por procuradores da República do Ministério Público Federal, o MPF. A pesquisa serviu de base para quatro ações civis públicas do MPF no Pará, apresentadas em julho e agosto deste ano. Elas pedem a suspensão de garimpos na região e de instituições financeiras acusadas de comprar ouro ilegal até que haja mais controle sobre a comercialização do minério. A ação deixa de fora a lavra industrial de ouro, caso da Gana Gold.

O estudo também indica que a maior parte dessa produção nacional vai para países como Canadá, Reino Unido e Suíça. No primeiro semestre de 2021, a taxa de produção de ouro considerado potencialmente ilícito continuou alta, alcançando 26% das 46,8 toneladas de ouro produzidas no período, calcula o pesquisador Bruno Manzolli, da UFMG.

Itaituba, sede da Gana, ocupa um lugar de destaque nesse cenário. Os pesquisadores da UFMG mostram que, junto com Jacareacanga e Novo Progresso, o município concentrou 85,7% do comércio pirata de ouro com indicação de origem em áreas que estão intocadas, com mata nativa, entre 2019 e 2020. Ou seja, a exploração ocorreu de forma ilegal em outros locais.

Um vídeo institucional da própria empresa mostra um empreendimento de grande porte, que utiliza maquinário pesado e conta com fábrica de beneficiamento do minério. A mina possui até pista de pouso, de 850 metros de extensão, construída em uma área que, segundo uma ação civil pública do MPF, foi desmatada ilegalmente. Itaituba está entre os municípios que apresentam dados mais críticos de desmatamento da Amazônia, de acordo com um levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon, publicado em junho deste ano.

Apesar de ser um mega empreendimento, a empresa tem apenas uma licença concedida pelo município, que não tem sequer autorização legal para autorizar a lavra de ouro. Mesmo assim, a ANM, órgão federal que regula o setor minerador, aceitou o documento e permitiu a operação da empresa em março de 2020, contrariando as normas da própria agência. “A realização de lavra sem a devida licença ambiental ou documento equivalente, ainda que nos termos da GU, será considerada lavra ilegal, inclusive para fins de caracterização do crime de usurpação”, expõe o artigo 107 da resolução nº 37/2020 da ANM.

Pelo tipo de exploração, com maquinário pesado para escavar anualmente, em tese, até 50 mil toneladas de terra à procura de ouro, com classificação de risco ambiental alto pela legislação federal, a agência deveria exigir que o licenciamento fosse feito pelo governo do Pará, como determina a lei complementar nº 140/2011 em seus artigos 8º e 12º. Durante o licenciamento, a secretaria estadual deveria pedir um estudo de impacto ambiental à empresa e depois apresentar esse documento ao Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade, ICMBio, órgão federal que regula áreas de preservação, conforme o artigo 1º da resolução 428/2010 do Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conama. A licença só poderia ser emitida se o instituto concedesse uma autorização de licenciamento ambiental, ALA, após analisar os possíveis impactos ambientais da atividade pretendida, como prevê o artigo 1º da instrução normativa nº 10/2020.

Nada disso foi feito.

No dia 10 de setembro, cerca de 30 agentes da PF cumpriram mandados na Gana Gold. Eles foram coletar amostras de ouro para verificar se o minério tem as mesmas características geológicas de uma carga de 39 kg de ouro ilegal apreendida no aeroporto de Jundiaí, em São Paulo, no mês anterior. Na operação, batizada de Gold Rush, a PF também prendeu no local um homem em flagrante por portar uma arma com numeração raspada. Em nota, sem citar o nome da Gana Gold, a PF afirma que a GU “foi empregada para dar roupagem de legalidade em transações ilícitas com um grande volume de ouro de origem espúria”. A investigação segue sob sigilo, e os responsáveis podem responder por crimes de usurpação de patrimônio da União, falsidade ideológica, grilagem de terras públicas, organização criminosa e diversos outros crimes contra a flora, segundo a PF.

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