segunda-feira, julho 05, 2021

Negro, no enterro do pai, presidente da Amil ouviu alguém perguntar à mãe se ele se tornaria bandido

Em março deste ano, Edvaldo Vieira, 53, se tornou um dos poucos executivos negros a liderar uma grande empresa no país, a Amil, parte do grupo UnitedHealth Group Brasil.

Como a maior parte dos pretos e pardos brasileiros, o executivo conta ter enfrentado episódios de racismo desde sempre:

“Sou o mais velho de quatro irmãos e tinha 15 anos quando meu pai faleceu. No seu enterro, lembro de alguém perguntar para a minha mãe: ‘o que será desses meninos? Quatro bandidos?’”.

Para ajudar a sustentar a família, começou a trabalhar como office boy em um banco. Depois, se inscreveu no programa de treinamento da mesma instituição e foi aprovado, dando início a uma carreira bem sucedida no mundo corporativo.

Edvaldo Vieira, 53

Presidente-executivo da Amil, empresa do UnitedHelth Group Brasil. Bacharel em Administração pela Escola Superior de Admministração e Negócios pelo Ibemec/Insper, com especialização emLiderança de Alta Performance pelo INSEAD e Fundação Getulio Vargas (FGV-CEO). O executivo teve passagens pela Metlife, HSBCe Citibank Brasil


As conquistas profissionais não encerraram o preconceito no trabalho e na vida pessoal: “Recentemente, estive sob a mira da arma de um policial, que me perguntou se o carro que dirigia era realmente meu”, disse à Folha.

Na Amil, Edvaldo quer que o corpo de funcionários reflita “o que encontramos na sociedade brasileira”. Para acelerar o processo, a empresa estabeleceu, neste ano, metas ligadas à diversidade, que terão impacto sobre a remuneração variável dos gestores. “Intencionalmente, movemos a agulha da inclusão”.
Além do trabalho dentro da empresa, Vieira afirma que perdeu o receio de se tornar uma referência para jovens negros:

“Durante muito tempo, pensei que servir de modelo poderia soar como falta de humildade. Até, recentemente, assimilar que jovens negros precisam de modelos que tenham seu fenótipo para se inspirar. E que eu poderia ajudar nesse sentido, compartilhando minha história”.

O sr. é um dos poucos líderes negros à frente de uma das grandes empresas no Brasil, como analisa as desigualdades no mercado de trabalho?

Ainda é preciso avançar, e muito. Primeiramente, reconhecendo que o problema existe e investindo em diagnóstico. Em seguida, investindo em ações afirmativas, com metas objetivas, que visem ampliar as oportunidades para lideranças negras nas empresas.

As empresas são as pessoas que atuam nelas. Muitas trazem um viés inconsciente para dentro do ambiente de trabalho que resulta na resistência aos profissionais negros.

Então, o trabalho de mudança se inicia a partir da cultura, com a conscientização dos colaboradores. Eles precisam estar preparados para receber as pessoas. E é fundamental uma revisão dos processos de seleção e de retenção de talentos, desde a lista de requisitos para uma vaga até a relação de faculdades habilitadas para prover candidatos.

Não adianta falar que inclusão e diversidade são importantes e desejar formação apenas em faculdade de primeira linha.

Quais os desafios de ser um líder negro de uma grande empresa em um país como o Brasil?

Considero que os executivos devem desempenhar, além de suas funções, um papel social nas empresas.

A forma como agem, com o apoio das organizações que lideram, e as políticas corporativas que valorizam acabam se espalhando pelos outros níveis hierárquicos. Se cada um buscar mudar a empresa em que trabalha, de cima para baixo, vamos impactar a sociedade.

Durante muito tempo, eu pensei que servir de modelo poderia soar como falta de humildade. Até, recentemente, assimilar que jovens negros precisam de modelos que tenham seu fenótipo para se inspirar. E que eu poderia ajudar nesse sentido, compartilhando minha história.

Se eu consigo, outros jovens também podem percorrer esse caminho e alcançar o destino que almejam.
Como acelerar, nas companhias, o desenvolvimento dos profissionais negros que já fazem parte das empresas?

A primeira medida é identificar e admitir que o problema existe e obter informações reais sobre o tamanho dele.

No UnitedHealth Group Brasil, temos um quadro que demonstra mensalmente o cenário interno de diversidade em todos os cargos da organização. Estamos trabalhando para que possamos ter os dados cada vez mais acurados.

O segundo passo é, a partir dos indicadores, tomar as atitudes pertinentes. Se não souber como fazer, buscar apoio de consultorias especializadas. Desde o ano passado, há um esforço grande de valorização da nossa prata-da-casa, para dar oportunidades de crescimento para profissionais negros que já trabalham na empresa.

Temos investido no time de aquisição de talentos, recrutamento e seleção, promovemos sessões com foco em liderança inclusiva para 100% dos gestores. E há também a atuação do grupo de diálogo Melanina, que conecta mais de 100 colaboradores de forma voluntária para conversas sobre o combate ao racismo.

Quais foram as dificuldades que enfrentou ao longo de sua carreira? O sr. enfrentou preconceito?

Sou o mais velho de quatro irmãos e tinha 15 anos quando meu pai faleceu. No seu enterro, lembro de alguém perguntar para a minha mãe: “o que será desses meninos? Quatro bandidos?”.

Eu sabia que teria de ajudá-la a sustentar a família, foi quando comecei a trabalhar como office boy em um banco, me inscrevi no programa interno de desenvolvimento e consegui ser aprovado. Depois, mudei de empresa e procurava sempre me preparar para que, quando as oportunidades aparecessem, eu estivesse apto. Além, é claro, de buscar criar oportunidades.

As questões relacionadas ao racismo, na vida e na carreira, sempre foram uma constante.

Como quando um chefe que eu tinha atrasava, propositalmente, as reuniões comigo, sem contar as vezes em que ele faltava. Ou outro [chefe] que não me achou adequado para uma posição que previa atendimento ao público. Ou quando um candidato a fornecedor, na sala de reunião, não dirigia a palavra a mim, só ao outro homem (branco), até se surpreender quando fui chamado de chefe. E ainda uma candidata a uma vaga que seria entrevistada por mim e que não acreditou que eu era o diretor, quando fiz a gentileza de ir buscá-la na saída do elevador.

E situações similares seguem ocorrendo na vida pessoal. Recentemente, estive sob a mira da arma de um policial, que me perguntou se o carro que dirigia era realmente meu.

Se fosse continuar, tenho várias [situações] até hoje, pois entendo que o racismo estrutural está aí e o viés inconsciente, também.

Devemos entender, enquanto sociedade, a existência dessa estrutura e trabalhar para mudar. Por isso precisamos que todos os antirracistas e que se engajem. Não adianta apenas ser antirracista e ficar calado ou na inércia. Precisamos agir todos, juntos, e cada vez mais entendermos que esse é um problema da sociedade e que endereçá-lo em busca de uma sociedade mais justa e equânime fará que todos evoluam e cresçam.

Quais são os seus principais desafios e projetos como presidente-executivo da Amil?

Estamos em uma jornada na qual queremos cada vez mais que nosso corpo funcional, em todos os níveis hierárquicos, seja reflexo do que encontramos na sociedade brasileira. Isso é fruto do ambiente que estamos construindo há três anos para ter mais pessoas diversas e em 2021 estabelecemos metas sobre o tema que influenciarão na remuneração variável dos gestores. Intencionalmente, movemos a agulha da inclusão.

Também nos engajamos em ações afirmativas externas. No fim de maio, houve a formatura da primeira turma do programa “Afronegócios Virando a Onda”, uma parceria da Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro) e o UnitedHealth Group Brasil. Cerca de 160 alunos do Rio de Janeiro e de São Paulo receberam formação por meio de mentorias e cursos para impulsionar o potencial de mercado dos participantes ao longo de cinco meses.

Nos últimos dois anos, lançamos uma Política Pró-Inclusão para desenvolver e promover uma cultura que elimine barreiras nas políticas e práticas na organização como um todo.

Aderimos à Coalizão Empresarial pelo Fim da Violência contra as Mulheres (apoiada pela ONU Mulheres e o Instituto Avon) e realizamos mais de 260 ações voltadas para a diversidade e inclusão.

Outra iniciativa foi a realização, em 2020, de um projeto-piloto de seleção de talentos com vagas exclusivas para pessoas que se enquadrem nos nossos seis pilares de diversidade (étnico-racial, deficiência, LGBTQIA+, gênero, diferentes gerações e multicultural), por meio do qual contratamos mais de 170 pessoas.

Aumentar a contratação de pessoas negras nas companhias é o suficiente? Como melhorar a mentalidade interna para ir além do marketing social?

Acho que o aumento da contratação é apenas uma entre muitas medidas necessárias. A diversidade não é apenas marketing social. A sociedade está cobrando mais das empresas. Ter um quadro de colaboradores que espelhe a miscigenação de uma nação torna a empresa mais justa e democrática.

Não é mais apenas o lucro pelo lucro, o compromisso social é cobrado. Meus filhos já me falaram que não querem ir para uma empresa para ganhar dinheiro. Eles se preocupam com o propósito do lugar onde vão trabalhar.

Outro ponto é que se tenho que fazer produtos para atender grupos diversos, ter diversidade dentro da empresa me ajuda a entender como esses grupos pensam e sentem.

Folha lançou um Índice de Equilíbrio Racial (Ifer), feito por economistas do Insper, que mostra que ainda há desequilíbrio entre a longevidade de brancos e negros. A saúde complementar pode aumentar o acesso da população negra à saúde de qualidade? Acredito que sim. 

O UnitedHealth Group Brasil tem como missão ajudar as pessoas a terem vidas mais saudáveis e fazer o sistema de saúde funcionar melhor para todos. 

Investimos recentemente em produtos de abrangência regional, mas com o diferencial do atendimento de urgência nacional, telessaúde e cobertura de hospitais da rede própria. Esse modelo de produto entrega um melhor custo-efetividade, podendo ampliar o acesso à saúde suplementar.​

Fonte: Folha

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