terça-feira, outubro 08, 2019

Bolsonarismo versus democracia representativa

Resultado de imagem para Fotos de Carlos AndreazzaPor Carlos AndreazzaMais uma vez – para surpresa de quem? –, vê-se Jair Bolsonaro investir, publicamente, contra o próprio partido. Agora, pedindo a um apoiador – em resumo – que esquecesse o PSL. Tem método nisso; apenas mais um avanço, talvez nem sequer o mais explícito, no projeto de depreciação do sistema partidário, do valor da democracia representativa, que é componente fundamental (e frequente) na agenda do bolsonarismo. 

É o que está em jogo: a desqualificação persistente do sistema partidário – da atividade política e, logo, do próprio Parlamento – em prol da ascensão personalista do líder carismático. Em resumo, conforme a mentalidade bolsonarista pontifica diariamente: quanto menos estrutura de representação, quanto menos mediação política, mais campo para o governante populista haverá; para que espalhe o corpo de seu plano de permanência. 

É uma obviedade. A democracia representativa – que tem no Legislativo sua maior expressão – é um empecilho a um programa de concentração personalista de poder. O bolsonarismo – de natureza autocrática – é hostil ao conceito de partido; uma estrutura a ser subjugada, instrumentalizada, apenas um gatilho técnico para sustentar aquela modalidade de democracia que se legitima somente por organizar eleições.   

Jair Bolsonaro nunca teve relação com partido – com qualquer dos vários em que esteve – que não meramente utilitária: uma plataforma formal obrigatória para a disputa eleitoral. Uma vez presidente, esse desprezo – que é da essência do fenômeno político antiliberal que encarna – apenas se intensificou, convertendo-se em ação, em movimento: seria necessário banalizar, eventualmente criminalizar, apregoar como atraso, algo a ser tirado da frente, a ideia de partido – essa impessoalidade. Nada como a mensagem radical de fazê-lo contra o próprio partido. Há, contudo, um caminho até aqui. 

Façamos um esforço de memória para lembrar como surgiu o PSL na equação que resultaria no triunfo eleitoral de Bolsonaro. Ele era do PSC, e foi no PSC que pôs em campo a bem-sucedida empresa de construção de sua persona político-eleitoral. Quem não se lembra do então deputado federal sendo batizado, no rio Jordão, pelo pastor Everaldo? Eles não tardariam a romper, porém. A disputa municipal de 2016, com Flavio Bolsonaro concorrendo a prefeito do Rio, mostrou a Bolsonaro, na prática, que o pastor não estava disposto a entregar – não com porteira fechada – o partido ao objetivo particular (e exclusivo) bolsonarista. 

Veio o tal Patriota. Quem se recorda? O partido, inclusive, fez um evento para apresentar Bolsonaro como seu candidato à Presidência. A associação – jamais formalizada – não demoraria a ruir. De novo: o dono do partido não aceitava entregar a propriedade de porteira fechada ao bolsonarismo. Foi quando Gustavo Bebianno entrou em campo. Foi quando surgiu o PSL. O partido do “queimado” Luciano Bivar. 

O entendimento seria rápido, e o projeto de poder dos Bolsonaro alugaria o PSL com facilidade – com submissão absoluta aos desejos do líder populista. Bivar aceitou entregar tudo (com exceção de Pernambuco), exatamente como lhe fora demandado – inclusive a presidência do partido, da qual se afastaria, durante o processo eleitoral, para dar lugar a Bebianno. 

Bivar pode ser “queimado”, mas é macaco velho. Entendeu – na hora – que poderia colher muitas vantagens no futuro, ao retomar o comando do partido, depois das eleições, talvez tendo o presidente da República, e certamente (o que lhe importava) tendo uma bancada expressiva no Congresso, algo sem precedentes para o PSL – o que significaria muito dinheiro do fundo partidário. 

O acordo foi claro. As apostas, certeiras. O bolsonarismo alugou o PSL para abrigar formalmente – como simples hospedeiro – seu projeto autoritário, personalista, de poder (mas sempre em trânsito para sair). Bivar, por sua vez, entregou o PSL contando em receber, adiante, um partido rico. Aí está. Simples. Foi bom para todo mundo. E todo mundo sabia que conveniências um dia acabam. 

Justiça seja feita, nunca Jair Bolsonaro e corte se relacionaram com o PSL senão como instrumento descartável. Os que aceitaram dançar a música sempre souberam o tom e o fado. E dançaram a marcha porque tinham intenções privadas, pequenos projetos pessoais de poder, que jamais seriam materializadas sem Bolsonaro. Os que dançaram rebolaram para validar – cada um com seu grau de consciência – uma relação de uso de um partido para depreciação do valor de partido. 

Sejamos ainda mais francos. Para além de gatilho formal à eleição de Bolsonaro, o PSL serviu como escada para a multiplicação eleitoral no Congresso de filhos do hoje presidente: gente de todo desprovida de qualidades individuais para o exercício legislativo, desprovida também de votos próprios, alçada ao Parlamento por haver simplesmente se associado à grife bolsonarista. 

Fala-se agora que uma tal UDN – em 2019! – estaria de braços abertos para receber Bolsonaro e família. Seria belo encaminhamento para um movimento que já não esconde o caráter reacionário. Esse porvir, no entanto, importa pouco; isto se tivermos clareza sobre o fato de que o bolsonarismo não tem partido, e nunca terá. (O Globo)

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