Ideias fora de lugar
O Santo Guerreiro precisa do Dragão da Maldade: a ausência de Lula tende a esvaziar o discurso de Jair Bolsonaro
Demétrio Magnoli - O Globo
As ideias já estavam
fora de lugar antes da condenação de Lula pelo TRF-4 e sua consequente
inelegibilidade. O voto unânime dos três magistrados mudou radicalmente o
panorama político-eleitoral. As ideias moveram-se junto com os votos, girando
180 graus - e continuaram fora de lugar.
Não era verdade,
antes, que as eleições presidenciais necessariamente ficariam reféns da
polarização entre populistas de esquerda e de direita. Não é verdade, agora,
que o espectro dos populismos simétricos tenha sido conjurado. Agora, como
antes, o enigma situa-se em outro lugar: a crise do centro político no Brasil.
Antes da sentença do
TRF-4, as sondagens atribuíam a Lula algo em torno de 35% das intenções de
voto, enquanto Jair Bolsonaro atingia cerca de 15%. O número relevante, que
passava quase imperceptível, era 50% — não a soma dos potenciais eleitores de
ambos, mas a metade do eleitorado avesso às duas alternativas populistas. Num
cenário em que a massa menos informada dos cidadãos só sabia da existência
daquelas duas candidaturas, 50% declaravam rejeitá-los. O espaço para uma
candidatura vitoriosa de centro ampliou-se, obviamente, com a virtual
destruição da postulação de Lula. Mas o centro não triunfará se persistir na
sua crônica incapacidade de formular um discurso político popular.
O outono do lulismo
reflete-se na fragmentação do campo do populismo de esquerda. Ciro Gomes (PDT),
Manuela D’Ávila (PCdoB) e Guilherme Boulos, presumível candidato pelo PSOL, já
disputam seu espólio eleitoral, enquanto o PSB tenta atrair o interesse de
Joaquim Barbosa. Tudo indica, porém, que o PT erguerá uma candidatura própria.
Nutrido a partir da campanha fantasmagórica de Lula, que promete a restauração
de uma mítica “idade de ouro” e exibe-se como vítima da “perseguição das
elites”, mister X, o candidato do PT, tem chances apreciáveis de ultrapassar a
barreira do primeiro turno. Nessa hipótese, uma imagem holográfica de Lula
reunificaria, no segundo turno, o bloco do capitalismo de compadrio, do
corporativismo e do paternalismo estatal.
Na ponta oposta (ao
menos, aparentemente), o populismo de direita apresenta-se unificado desde o
início. Bolsonaro investiu no promissor mercado eleitoral do ódio ao lulismo,
mesclando sua alma original ultranacionalista a uma agenda ultraliberal fornecida
por seitas ideológicas das catacumbas da internet. O Santo Guerreiro precisa do
Dragão da Maldade: a ausência de Lula tende a esvaziar o discurso de Bolsonaro.
Contudo, por enquanto, sua candidatura progride, alimentada pela ilusória
candidatura de Lula. Dias atrás, num evento patrocinado pelo BTG Pactual, o
sombrio deputado foi ovacionado por mais de dois mil investidores, uma
reiterada comprovação de que a idiotia política e a habilidade para ganhar
dinheiro não são mutuamente excludentes.
Mister X (Lula em
holografia ou Ciro Gomes, ou mesmo Boulos) versus Bolsonaro? Mesmo agora, não
pode ser descartada a hipótese de um tóxico segundo turno, uma “escolha de
Sofia” entre a tradição varguista e a nostalgia da ditadura militar, uma recusa
absoluta a encarar os dilemas do presente. Contudo, só seremos arrastados a
essa encruzilhada impossível se o centro político concluir sua trajetória de
implosão.
O PSDB avançou, de
olhos abertos, rumo ao abismo engalfinhando-se durante 15 anos nas estéreis
lutas intestinas entre seus caciques, firmando um pacto faustiano com Eduardo
Cunha em nome do impeachment e, finalmente, perfilando-se com o Aécio Neves do
malote de dinheiro da JBS. Mas o colapso tem raízes mais profundas: desenhou-se
lá atrás, quando o partido de FHC não soube formular uma política social
alternativa ao programa paternalista de estímulo ao consumo privado conduzido
pelo lulismo triunfante. O vazio de ideias da candidatura de Geraldo Alckmin
espelha um impasse antigo, que se manifesta agonicamente nas periódicas
celebrações tucanas dos aniversários do Plano Real.
“Exemplo de lealdade
no ninho: enquanto Alckmin tenta consolidar sua candidatura, FHC busca um
Macron para chamar de seu”, disparou um obscuro deputado petista, acertando o
alvo. Duvidando do candidato tucano, FHC descreve círculos especulativos ao
redor da potencial candidatura de Luciano Huck, qualificando-a como “boa para o
Brasil”, capaz de “arejar” o cenário e “botar em perigo a política
tradicional”. O Macron da França surgiu no vórtice de uma crise dramática,
criou um partido centrista viável e ofereceu à nação um ousado projeto de
reformas econômicas, sociais e institucionais. Já o Macron de FHC emerge como
fenômeno exclusivamente midiático: uma estrela brilhante na constelação das
celebridades.
Macron - como, em
circunstâncias nacionais diferentes, o argentino Mauricio Macri e o partido
espanhol Cidadãos - evidencia que o centro político é capaz de se reinventar
diante do desafio populista. O Macron de FHC é o exato oposto disso: um atestado
de
falência do nosso centro político.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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