segunda-feira, maio 22, 2006

O RETRATO DA IDADE MÉDIA

Para quem não teve oportunidade de ler a entrevista do governador Cláudio Lembo, recomendo a leitura dó texto abaixo, de autoria desse ícone do jornalismo brasileiro, no melhor sentido, Mino Carta.

MINO CARTA
O governador Cláudio Lembo diagnostica a doença do Brasil nos dias do ataque do PCC: a minoria branca fracassou, o que acontece é o alerta Há quanto tempo não lia entrevista tão digna e justa, articulada e direta ao alvo? Pergunto-me se alguma vez tive a ventura de ler, sobretudo de entrevistado tido como conservador.

Cláudio Lembo, governador de São Paulo depois da incompatibilização de Geraldo Alckmin, é, de verdade, um liberal à moda antiga. Meu pai, Giannino, também era personagem de um tempo em que, na Itália, os liberais, ao lado de democrata-cristãos, socialistas e comunistas lutavam contra o ditador Mussolini. E pelos fascistas meu pai foi preso e condenado.

Liberais, quero dizer, tão diferentes daqueles que no Brasil se pretendem. Por exemplo, os mesmos que chamaram seus gendarmes para executar o serviço sujo em 1964. Entrevistei Cláudio Lembo em 1976, recordo opiniões corajosas e até insólitas, na moldura daquela quadra. Reencontro-o 30 anos após, encantado com sua lucidez, nas páginas da Folha de S.Paulo, entrevistado por Mônica Bergamo.

Sublinho um punhado de passagens, a meu ver definitivas. Pintam a Idade Média, em meio à tempestade que varre São Paulo, sitiada pelo PCC. Anoto frases do governador. O Brasil está desintegrado. Perdeu seus valores cívicos. Só acredita na camisa da Seleção. É um país que só conheceu derrotas, derrotas sociais. Temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa.

E sobre a minoria branca, que, por intermédio de celebridades variadas, manifesta-se nas colunas sociais e clama contra o PCC, não falta, na fala de Lembo, a evocação de vicissitudes históricas, dos efeitos da Inquisição e da escravidão, das raízes deitadas na terra da casa-grande e da senzala. Aquela “tinha tudo”, esta “não tinha nada”. Somos um país dúbio, cínico. E “o cinismo nacional mata o Brasil”.

Há, ainda, a crítica ao próprio Alckmin e a Fernando Henrique Cardoso, ambos prontos a militar entre os partidários da ajuda federal no revide ao PCC. FHC, diz Lembo, perdeu uma boa oportunidade para ficar em silêncio. Mas “pode ser que tenha precedente sobre acordos”. Trata-se do diagnóstico inescapável da doença de um país infinitamente inferior à tarefa que a natureza lhe atribuiu, vítima da “minoria branca”, vulgar, incompetente, exibicionista, provinciana e feroz.

A guerra paulistana ganha, assim, dimensões nacionais, é o sintoma mais recente e clamoroso do fracasso dos donos do poder, como diria Raymundo Faoro. Vice-campeão mundial em má distribuição de renda, o Brasil é, ao mesmo tempo, para ficar em São Paulo, o país da grotesca Daslu, ou da segunda maior frota de helicópteros do mundo, ou das lojas que exibem, ao longo da rua Colômbia ou da avenida Europa, atrás das vitrines blindadas, matilhas de Ferraris, alcatéias de Jaguares.

É destes dias o anúncio de um empreendimento imobiliário disposto a se apresentar como santuário contra a devastação do PCC. Nove torres residenciais brotarão à beira da Marginal do Pinheiros, perfumado pelos esgotos da cidade, com direito à visão do panorama da favela do Real Parque. Recinto fechado, obviamente, em companhia do Shopping Cidade Jardim e outras grandiosas utilidades.

A cobertura mais cara custa 18 milhões de reais. Nada de espantos: pudera, vale-se de 1.700 metros quadrados de construção e de 17 vagas na garagem. Eis a Idade Média, consagrada em toda a sua plenitude. O castelo protetor de quem vive dentro das suas muralhas, a postar archeiros atrás das seteiras. Lembo afirma: “Acho que tudo isso foi um grande alerta para o Brasil”. A burguesia “terá de abrir a bolsa”, a sociedade haverá de ser reformada. Possível sem confronto, sem que o conflito se aprofunde?

E sem que a mídia entenda, finalmente, qual é o seu papel? O governador condena quem recomenda aplicar a lei de Talião, como certos editorialões. Permito-me a referência, embora veloz, à revista Veja. Está a inaugurar estilo inédito de jornalismo, pelo qual publica-se impavidamente aquilo que não é provado. Não haverá quem diga ser verdade, mas também ser mentira. In dubio pro reo? Já era. Novíssimo jornalismo. Ou será medieval?

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