A irresponsabilidade de FHC induziu a indústria ao consumo do gás de um país marcado por traumas
A República da Bolívia é um país muito sofrido. Conhecida no período colonial como Alto Peru, era dominada pelos interesses do comércio de Buenos Aires. Conseguiu sua independência sob a influência de Simón Bolívar, em 1825. Desde então, viveu tumultuada vida política com uma sucessão de eleições, golpes e contragolpes, que ultrapassam em número os seus 180 anos de independência. Antigas disputas sobre fronteiras a mantiveram sempre em estado de tensão, principalmente com relação ao Chile, independente desde 1810 e muito mais pobre na época.
No início de 1879, o país iniciou uma guerra contra o Chile. O Peru, com o qual mantinha um “tratado secreto” desde 1873, veio em seu socorro, declarando também guerra ao Chile. A Guerra do Pacífico terminou em janeiro de 1881, com uma estrondosa e definitiva vitória chilena! A Bolívia sofreu uma tragédia: perdeu um rico território mineral e sua saída para o Oceano Pacífico. Há anos, tenta recuperá-la por meios diplomáticos que não encontram simpatia nem do ex-companheiro de desventura, o Peru, nem do ofendido, o Chile.
Um historiador daquela guerra chama a atenção para a diferença entre a sobriedade e a objetividade das mensagens chilenas e a fanfarronice do Alto Peru (Peru mais Bolívia), que afirmava que el heroísmo espartano desplegado por nosotros és ejemplo en la historia del mundo, enquanto perdiam a guerra! O ridículo Chávez nada deixa a desejar. As desventuras não pararam aí.
Em 1903 (durante uma disputa de fronteiras com o Brasil), a Bolívia arrendou o território do Acre (habitado por uma maioria de brasileiros), ao The Bolivian Syndicate of New York City in North America, dirigido por um filho do presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, e lhe concedeu direitos quase soberanos. O Brasil protestou fortemente e os brasileiros, sob o comando de Plácido de Castro, revoltaram-se e venceram uma expedição militar boliviana, que se rendeu a 1º de maio de 1903. A habilidade do barão do Rio Branco levou a Bolívia a aceitar uma indenização de 2 milhões de libras pelos 200 mil quilômetros quadrados definitivamente incorporados ao Brasil. Mais adiante, em 1932, o Paraguai declara guerra à Bolívia e ocupa definitivamente quase todo o território do Chaco.
Em 1938, foi assinado um tratado entre o Brasil e a Bolívia, que implicava dar uma saída ao petróleo boliviano para o Oceano Atlântico. Propunha-se a construção de uma estrada de ferro de Santa Cruz de la Sierra a Corumbá e delimitava-se um território subandino boliviano do Parapetí para o norte, onde o petróleo poderia ser explorado por empresas em que participassem os dois governos.
Que se tratava de uma saída para o Atlântico concedida pelo Brasil está claro pelo Artigo X do tratado: “O petróleo e os seus derivados de procedência boliviana, que se exportem através do território do Brasil, gozarão as mais amplas facilidades de livre trânsito (...). Não estarão sujeitos a espécie alguma de imposto fiscal, quer nacional, estadual ou municipal, a título de trânsito. As tarifas das estradas de ferro brasileiras para o referido transporte não serão em caso algum maiores do que as que se aplicam ao petróleo e seus derivados que, de outras procedências, abastecem o mercado do Brasil”.
Pois bem, a ferrovia foi inaugurada em janeiro de 1955. No mesmo momento, o presidente da Bolívia, Paz Estensoro, entregou ao presidente do Brasil, Café Filho, um documento que ficou conhecido como Memorandum Estensoro, no qual se denunciava o tratado no que se referia à exploração do petróleo! O protesto brasileiro deu origem a uma revisão do tratado de 1938, por meio do Acordo de Roboré, de 1958, que provocou grande comoção no país. Levantaram-se várias dúvidas sobre a existência de outros entendimentos secretos (na tradição boliviana) com a Argentina e com empresas internacionais que permanecem até hoje escondidas no ar rarefeito daquele país.
Diante desse passado de 180 anos de acordos secretos, traição, chicanas, tramóias e descumprimento de contratos é que devemos medir a irresponsabilidade brasileira ao modificar a matriz energética para incluir o gás boliviano. Investimos em um gasoduto de 3 mil quilômetros para colocar boa parte da indústria nacional nas mãos de fornecedor não confiável.
Surpreendente é reler o que disse o ministro de Relações Exteriores do Brasil em 17 de fevereiro de 1993, quando se firmou em Cochabamba o contrato de venda do gás boliviano entre a Petrobras e a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB): Esta assinatura “constitui inequívoca expressão de confiança entre nossas nações e reafirmação da solidariedade em torno do ideal de integração sul-americana”. Bobagem! Aquela irresponsabilidade beira à criminalidade quando vemos o gasoduto ser incluído durante o governo FHC nos 42 projetos do Brasil em Ação (1997), para induzir a indústria nacional a ajustar-se ao consumo de gás fornecido por um país que teve mais governos do que seus anos de vida!
Delfin Neto
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