sexta-feira, maio 04, 2018

Epístola ao governador Jatene

Por Lúcio Flávio Pinto_

Sr. governador.

Este é o apelo de um cidadão da sua idade, da sua geração, seu acompanhante de longa data, participante da história da nossa terra comum: por favor, renuncie ao seu cargo.

O sr. parece ter se decidido a apenas deixar o tempo passar e encerrar seu mandato com a glória formal (e abstrata) de ter sido o paraense por mais vezes - três - eleito governador do Estado, pelo voto livre e geral dos seus conterrâneos.

Mas que fim triste para essa façanha lhe aguarda, governador.

Não sei se o sr. se deu ao trabalho (como cansa!) de ler os jornais diários de hoje em Belém. Todos eles sangram, inclusive as publicações do grupo Liberal, que está deixando-o só, já sem qualquer boa vontade, muito menos apoio.

É homicídio da primeira à última página dos cadernos de polícia, numa sanha que também é de predador da desgraça alheia (só de pobres, pretos e prostitutas). Na maioria, execuções sumárias, bárbaras, selvagens, animalescas. Nada igual em qualquer parte do país (talvez do mundo sem guerra declarada), mesmo no Rio de Janeiro, cuja segurança pública está sob intervenção militar federal (de impressionar - e nada mais).

Dez pessoas foram mortas a queima-roupa, sem a menor possibilidade de defesa, desde a execução da cabo da PM Fátima, no domingo passado. É, evidentemente, vingança. Mais vingança virá porque PMs continuam também a ser mortos. A conta já é de 22 em quatro meses, mais de 70% das baixas por assassinato em todo ano passado.

Já não se sabe com exatidão quem está matando e quem está morrendo nesses homicídios por atacado. A confusão é grande. Podem ser milícias ou o tráfico acertando contas. Na maioria do casos, infelizmente, já parece que são policiais camuflados vingando colegas, descrentes na justiça e na capacidade de resposta da corporação.

Até investigar a sério ficou difícil, tão numerosas são as ocorrências. Os cadáveres se sucedem e se acumulam no IML, exigindo trabalho intenso dos peritos legistas. Do lado de fora, as famílias enlutadas protestam, desesperadas.

A voz de comando desapareceu, não é ouvida ou perdeu toda credibilidade. No vácuo, impera o caos, cada um por si ou em bandos sem controle. Quem for podre que se quebre. Sabemos, desde sempre, qual é o lado fraco.

No meio, indefeso, exposto à brutalidade, o pobre morador da periferia metropolitana. Suas casas precárias são invadidas facilmente por justiceiros, que escondem o rosto, se vestem como emissários da morte e agem sem a menor consideração por suas vítimas ou as testemunhas, geralmente amigos e parentes, alguns também mortos por derivação do ódio, da premeditação. Por estarem no lugar errado, na hora errada (como se ainda houvesse lugar e hora seguros; a violência está se socializando).

Algumas das vítimas são selecionadas por seus antecedentes criminais, por sua relação de proximidade (ou promiscuidade) com bandos, milícias ou maus policiais, que extorquem ou seviciam. A escolha de outras vítimas parece aleatória, sem qualquer parâmetro.

Por que um jovem de 13 anos foi executado dentro da sua casa, diante dos pais? O que ele fez de tão grave que resultou na sentença de morte por agentes da justiça com as próprias mãos?

O sr. já parou um segundo nessa sua rotina da retaguarda do poder e pensou em como é o dia a dia dos moradores de bairros como o Curuçambá, cenário da execução da cabo Fátima e das pessoas imoladas em represália?

Nesse bairro e em praticamente todos os subúrbios da Grande Belém, os moradores vão dormir assustados e não sabem se acordarão. Despertos, se apegam ao desconhecido para chegar ao fim do dia. Já há balas perdidas em meio a constantes tiroteios. Carros pretos e pratas peliculados causam terror.

A polícia mais assusta do que tranquiliza (e os próprios policiais que não integram milícias ou não estão extrapolando de suas missões circulam sob tensão enorme). Jamais se viu algo parecido em Belém.

O sr. se reuniu com a cúpula da segurança pública no domingo planejando o que fazer. A rigor, nada fez. Sequer um pronunciamento à sociedade. Muito menos providências diferentes das já adotadas, como reforço de contingente e surtos temporários da presença estatal. Frustrou as últimas esperanças. Nem nas imagens da reunião o sr. esteve presente.

O sr. cansou. O sr. não quer ou não pode se colocar à frente da situação, a posição exigida de quem é comandante. Continua no cargo porque quer manter um esquema de poder para favorecer os seus parentes, amigos e correligionários. Por isso, não se desincompatibilizou, já que não confia no seu vice, Zequinha Marinho, para executar seus planos (os dele parecem estar associados ao do seu agora inimigo maior, o senador Jader Barbalho e seu filho, Helder, que quer a sua cadeira). A justificativa de que tomou essa decisão pensando no Pará não convence.

Se quer nos convencer, renuncie. Faça como Raúl Alfonsín, que saiu na presidência da Argentina antes do tempo para permitir ao país antecipar sua reorganização, que o chefe da nação já não se sentia em condições de realizar.

Não se sabe o que fará Zequinha Marinho. Mas pelo menos ele está com vontade de fazer alguma coisa. Há muito tempo, aliás. O sr. é que não lhe deu espaço algum.

Renunciando agora, o sr. talvez ainda consiga sair do governo em condições de circular pelas ruas de Belém sem hostilização. Será melhor para todos.

Sei que o sr. ignorará o que peço. Mas pelo menos faço o registro para a história.
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Nota do blog: Só mesmo um jornalista do porte de Lúcio Flávio Pinto para produzir um texto com esse nível lucidez.

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